terça-feira, 31 de dezembro de 2013

As cidades e a memória, 3, em As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino

Inutlimente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da canhoneira que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre o molhe.

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grandes das janelas, nos corrimão das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.


tradução de Diogo Mainardi

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Cocoon, de Björk

Who would have known
That a boy like him
Would have entered me lightly
Restoring my blisses

Who would have known
That a boy like him
After sharing my core
Would stay going nowhere

Who would have known
A beauty this immense
Who would have known
A saintly trance
Who would have known
Miraculous breath
To inhale a beard
Loaded with courage

Who would have known
That a boy like him
Possessed of magical
Sensitivity
Who would approach a girl like me
Who caresses cradles his head
In her bosom

He slides inside
Half awake, half asleep
We faint back
Into sleephood
When I wake up
The second time
In his arms
Gorgeousness
He's still inside me

Who would have known
Who ahhh
Who would have known

A train of pearls
Cabin by cabin
Is shot precisely
Across an ocean

From a mouth
From a
From the mouth
Of a girl like me
To a boy
To a boy
To a boy

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Terei de cantar os gafanhotos, de Nuno Ramos

como um profeta, pedir perdão às formigas
que matei
(milhares)
às asas dos besouro
que arranquei, às barbatanas
de tubarão que comi
terei de amar cada mariposa
e mesmo o creme adstringente
culinário que sai de dentro das baratas
espatifadas sob a sola das sandálias?
Sim, terá.
E ainda por cima
voltar vestido de duende
uma glande enorme, condão, tocando
o pelo dos bichos
dizendo alto o nome deles, em sua própria
língua? Elefante sou eu
dromedário, eis aqui o teu irmão?
Terei de voltar
voltar para sempre
apontando o dedo
enumerando o que já é real
sem mim, mas não propriamente
vivo sem mim? Por que amei
assim, se serei punido? Por que não me deixam ir
sem a sombra de um verso
sem abraçar a pele imunda
do que, jacaré, já morreu?
Porque toquei minha carneira com meu dedo
afundei a digital na cona dela
e vi o branco dos seus olhos
entre os cílios, sob a cúpula
cheia de uma luz pesada mas sempre
(sempre)
transparente, como o alto de uma ogiva
gótica
misturado ao interior viscoso de uma jabuticaba
terei de amar o que não é meu, matéria confusa, pelanca
física que tento cantar?
Sim, terá.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Poema vertigem, de Roberto Piva

Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou o tecno pagão
Eu sou o Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande & Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua namorada
de vagina colorida
(ele vestia a calcinha dela
& dançava feito Shiva
no meu corpo)
Eu sou o nômade de Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã coberto
de peles e andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Medusa, de Sylvia Plath, Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo

Longe dessa península de bocais pétreos,
Olhos revirados por varetas brancas,
Orelhas absorvendo as incoerências marinhas,
Você abriga sua cabeça débil — globo de Deus,
Lente de piedades,

Seus parasitas
Oferecem suas células selvagens à sombra de minha quilha,
Empurrando como corações,
Estigmas vermelhos bem no centro,
Cavalgando a contracorrente até o ponto de partida mais próximo.

Arrastando seus cabelos de Jesus.
Escapei, me pergunto?
Minha mente sopra até você
Umbigo de velhos mariscos, cabo Atlântico,
Se mantendo, parece, em estado de milagrosa conservação.

Em todo caso, você está sempre ali,
Respiração trêmula no fim da minha linha,
Curva d’água pulando
Em meu caniço, ofuscante e agradecida,
Tocando e sugando.

Não chamei você.
Não chamei você mesmo.
No entanto, no entanto
Você veio a vapor em minha direção,
Obesa e vermelha, uma placenta

Paralisando amantes impetuososos.
Luz de naja
Espremendo o hálito das rubras campânulas
Da fúcsia. Sem poder respirar,
Morta e sem dinheiro,


Superexposta, como num raio-x.
Quem você pensa que é?
Hóstia de comunhão? Maria Carpideira?
Não vou tirar nenhum pedaço desse seu corpo,
Garrafa aonde vivo,

Vaticano espectral.
O sal quente me mata de enjôo.
Imaturos como eunucos, seus desejos
Sibilam para meus pecados.
Fora, fora, coleante tentáculo!

Não há mais nada entre nós.





fonte: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2007/09/medusa-de-sylvia-plath.html

um trecho de pierre michon

 “Cada bebedeira era para mim como um ensaio geral, uma retomada das formas decaídas da Graça; pois a Escrita, pensava eu, viria em sua hora assim, exógena e prodigiosa, indubitável e transubstancial, transformando meu corpo em palavras como a embriaguez o transformava em puro amor de si, sem que segurar a pena me custasse mais do que levantar o cotovelo; o prazer da primeira página me seria como o arrepio ligeiro do primeiro copo; a amplidão sinfônica da obra acabada ressoaria como os cobres e os címbalos da embriaguez maciça, quando copos e páginas são inumeráveis. Arcaico meio, grosseiro subterfúgio de um xamã camponês!”

sábado, 15 de junho de 2013

Carme A Cornificio, de Catullo

Malest, Cornifici, tuo Catullo
malest, me hercule, et laboriose,
et magis magis in dies et horas.
Quem tu, quod minimum facillimumque est,
qua solatus es allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
Paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Simonideis.

Vai mal, Cornifício, o teu Catulo,
vai mal e - por Hércules -, padece demais, muito
mais, a cada dia, a cada hora.
E tu - se era nuga, se era nada -
que consolo deste, que palavras?
Sinto ódio. Assim, és meus amores?
Só poucas palavras, certas, mais
tristes que o lamento de Simônides.

Malest Cornifici Tuo Catullo, de Allen Ginsberg

I'm happy, Kerouac, your madman Allen's
finally made it: discovered a new young cat,
and my imagination of an eternal boy
walks on the streets of San Francisco,
handsome, and meets me in cafeterias
and loves me. Ah don't think I'm sickening.
You're angry aat me. for all of my lovers?
It's hard to eat shit, without having visions;
when they have eyes for me it's like Heaven.

San Francisco, 1955