quarta-feira, 10 de junho de 2015

Poema Abraço, de Murilo Mendes

Sim: letra e nuvem
lutam com os sonhos
Pela posse do poema.

O sino da tempestade
Convida a criação às núpcias,
O véu da ternura desce
Sobre a carne inconformada.

A página aberta do livro
Mostra a inicial de Altair.
Responde o clarim augusto:

_Vestida de água e céu
Voas acima do tempo.
No espelho do futuro
Te assisto refletida.
Serás tu mesma? Ou sou eu.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

michel serres

Aí, começa, verdadeiramente, a história. Como dois labirintos tão complicados podem se encontrar, se sobrepor, se complementar? Ariadne se perde no Teseu. Teseu não se encontra nas avenidas e entroncamentos traçados no monte de Ariadne. Seria preciso conceber a relação de duas espécies, dois gêneros, dois reinos, tigre e pavão, zebra e jaguar, joaninha e papoula, centopéia e calcedônia, um camaleão em mármore. Acontecem milagres, alguns tigres ou tiglões sobrevivem a duras penas. Ou melhor, é preciso que Ariadne se torne branca, que Teseu reenrole em sua roca todos os fios que embaraçam e dividem o corpo multicor de Ariadne. Nossa alma de superfície, salvo milagre, cria obstáculo a nossos amores, como se tivéssemos uma couraça de tatuagens. É preciso depor a couraça, fundir os mapas dos caminhos e das encruzilhadas, descobrir a alma ou fazê-la arder de outra maneira, para que as chamas se misturem.  Quando a alma entra em um órgão, ele adquire consciência e a perde. Se o dedo toca o lábio e se diz eu, a boca torna-se objeto, mas na verdade o dedo se perde [...] A alma, como poças, forma a tatuagem, o conjunto dessas linhas cruzadas desenha um campo de forças: o espaço da pressão extraordinária da alma para apagar docemente as sombras do corpo, e os recursos máximos do corpo para resistir a esse esforço. Na pele, a alma e o objeto se avizinham, avançam, ganham ou perdem terreno, mistura demorada e vaporosa do eu e do corpo negro, de onde sai, em um dado momento, a cauda de pavão de cores misturadas. A luta termina com o corpo místico branco de alabastro. Não sou mais nada. Ou com o corpo cibernético, caixa-preta, outro nada. A transfiguração extática, perda do corpo na alma, retira a tatuagem. O descascamento obtido, o autômato perfeito também a retiram da caixa-preta total. Assim, o corpo misturado, encontra-se no meio, entre o céu e o inferno: no espaço cotidiano.


fonte: http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6099 pg 113