quinta-feira, 3 de junho de 2021

cristo na cruz, de jorge luis borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.

As três vigas são de igual altura.

Cristo não está no meio. É o terceiro.

A negra barba pende sobre o peito.

O rosto não é o rosto das lâminas.

E áspero e judeu. Não o vejo

e o seguirei buscando até o dia

último de meus passos pela terra.

O homem violado sofre e cala.

A coroa de espinhos o lastima.

Não o alcança o escárnio da plebe

que viu sua agonia tantas vezes.

A sua ou a de outro. Dá no mesmo.

Cristo na cruz. Desordenadamente

pensa no reino que talvez o espera,

pensa em uma mulher que não foi sua.

Não lhe é dado ver a teologia,

a indecifrável Trindade, os gnósticos,

as catedrais, a navalha de Occam,

a púrpura, a mitra, a liturgia,

a conversão de Guthrum pela espada,

a Inquisição, o sangue dos mártires,

as atrozes Cruzadas, Joana D’Arc,

o Vaticano que bendiz exércitos.

Sabe que não é um deus e que é um homem

que morre com o dia. Não lhe importa.

Lhe importa o duro ferro dos cravos.

Não é um romano. Não é um grego. Geme.

Nos deixou esplêndidas metáforas

e uma doutrina do perdão que pode

anular o passado. (Essa sentença

foi escrita por um irlandês em um cárcere.)

A alma busca o fim, com urgência.

Escureceu um pouco. Já morreu.

Anda uma mosca pela carne quieta.

Que pode me servir que aquele homem

tenha sofrido, se eu sofro agora?




via Rosa