quarta-feira, 27 de abril de 2022

Homem que descansas à sombra das árvores, de Cecília Meireles

Homem que descansas à sombra das árvores,

com um cesto de frutas cercado de abelhas,

a camisa aberta, o sol derramando

pela tua barba pétalas vermelhas,


– vires de tão longe, do reino da Fábula

para adormeceres nesta humilde estrada!

De onde são teus sonhos? De que céus e areias?

Que é da tua vida, ó sultão do nada?

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Variations on a Theme de William Carlos William, de Kenneth Koch

  1


I chopped down the house that you had been saving to live in next

     summer.

I am sorry, but it was morning, and I had nothing to do

and its wooden beams were so inviting.



                                                                  2


We laughed at the hollyhocks together

and then I sprayed them with lye.

Forgive me. I simply do not know what I am doing.



                                                                  3


I gave away the money that you had been saving to live on for the next ten

     years.

The man who asked for it was shabby

and the firm March wind on the porch was so juicy and cold.


                                                                  4


Last evening we went dancing and I broke your leg.

Forgive me. I was clumsy, and

I wanted you here in the wards, where I am the doctor!



via poetryfoundation

via rosa neves

https://www.poetryfoundation.org/poems/57326/variations-on-a-theme-by-william-carlos-williams

Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.


O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.


Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.


Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.


Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.


Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Acordar, viver, de Carlos Drummond de Andrade


Como acordar sem sofrimento?

Recomeçar sem horror?

O sono transportou-me

àquele reino onde não existe vida

e eu quedo inerte sem paixão.


Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,

a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperas

de amanhã com as coisas ásperas de hoje?


Como proteger-me das feridas

que rasga em mim o acontecimento,

qualquer acontecimento

que lembra a Terra e sua púrpura

demente?

E mais aquela ferida que me inflijo

a cada hora, algoz

do inocente que não sou?


Ninguém responde, a vida é pétrea.



via Eduardo Lacerda no FB

A PACIÊNCIA DE SITIS, de Adriane Garcia



Você acha que você é o único justo que sofre, Jó?

Você se acha tão especial que se senta nesse monturo

De vermes e de sujeira e passa o dia

E as noites choramingando

E falando com esse seu deus surdo

E a louca sou eu?


Você acha o quê? Acha que todas essas crianças

Que passam fome à nossa volta

Pecaram contra o seu deus?

Que todos os pais e as mães que perderam

Seus filhos para a calamidade

Pecaram, nesta medida, contra o seu deus?


Você perdeu seus dez filhos

E eu, Jó?

Foi de mim que eles nasceram

Fui eu que cuidei de cada um deles

Acha que a morte deles dói mais em você

Do que em mim?


Você vê clarões no meio da noite

E ouve vozes de anjos e demônios

Você não faz ideia dos demônios

Que eu tenho visitado à noite

Para trazer o pão desta casa

Para não nos deixar à míngua, Jó


Sabe onde estive ontem? Olhe para mim!

Você nem reparou na vergonha

Dos meus cabelos curtos

Porque você não repara em mais nada, Jó

Eu vendi os meus cabelos

Para haver água nas nossas jarras


Pensa que a vida espera enquanto você chora?

Acha que cessam de nos cobrar ofertas

No templo do seu deus caridoso?

Sou eu, Jó, que durante o dia, andarilha

Feito uma escrava, saio de casa em casa

Oferecendo minhas mãos para ficarmos vivos


Esses seus amigos trazem alguma coisa?

A única coisa que vi fazerem até agora 

É encherem a sua cabeça com bobagens

Enquanto isso, lá vai a louca da Sitis

Providenciar as ervas do seu unguento

Que você despreza, que você não usa


Porque fica esperando esse seu deus surdo

Que só te oferece coleira e ameaças

Que se excita com a sua autopiedade

Enquanto você se curva

Buscando arrependimento

De quê, Jó?


Se sempre agimos como é possível agir

Neste mundo em que estamos nós por nós

Se o que vemos são ímpios exibindo felicidades

Enquanto os oprimidos só recebem castigos

Se a ordem do mundo se perde 

Na doença, na guerra, no saque


Onde está o seu deus, Jó?

Você me diz que nasceu nu e voltará nu

Mas eu tenho carregado a minha dor 

Para te vestir as roupas

Agora os sacerdotes vêm e ensinam

Que é preciso sofrer e ter calma


Pois eu digo, Jó

Se você não vai lutar contra o sofrimento

Se você não vai reconstruir 

Nosso pequeno mundo comigo

Amaldiçoa logo esse deus

E morre.



via fb da autora

domingo, 8 de agosto de 2021

CARTA AO PAI, de Ricardo Domeneck

Agora que o senhor

mais assemelha pedaço

de carne com dois olhos

dirigidos ao teto escuro

no leito em que provável

só não há-de morrer só

porque nem a própria

saliva poderá engolir

por si na companhia

somente desta sonda

que o alimenta

me pergunto se ainda

em validade a proibição

da mãe em confessar

ao senhor os hábitos

amorosos das mucosas

que são minhas

e se deveras me amaria

tanto menos soubesse

quanta fricção já tiveram

que não lhes cabia

biológica ou religiosa

-mente e se também

pediria para sua filhoa

a morte que desejou

a tantos de minha laia

quando surgiam na tela

da Globo da Record

da Manchete do SBT

que sempre constituíram

seu cordão umbilical

com a tradição

e se deveras faria

sobrevir sobre eles

grande destruição

pela violência

com que urrava

seus xingamentos

típicos de macho

nascido no interior

desse país de machos

interiores e quebrados

em seus orgulhos falhos

de crer que o pai

é o que abarrota

geladeiras e não deixa

que falte à mesa

o alimento que nutre

as mesmas mucosas

em que corre

o seu sangue

mas não seu Deus

e ora neste leito partido

o cérebro em veias

como riachos insistentes

em correr

fora das margens

se o senhor

soubesse o dolo

com que manchei

a mesa

de todos os patriarcas

ainda pergunto-me

se me receberia

com a mansidão

que aceita na testa

o beijo desta sua filhoa

que nada mais é

que a sua imagem

e semelhança invertidas

tal espelho

que refletisse opostos

de gênero e religião

ou o desenho

animado na infância

de uma Sala de Justiça

onde numa tela

podia-se observar

um mundo ao avesso

e se o Pai e o pai

odeiam deveras

o gerado nas normas

da Biologia e Religião

mais tarde porém geridos

na transgressão das leis

que o Pai e o pai

impõem-nos na ciência

de sermos todos falhos

nessa Terra onde procriar

é tão frequente

que gere prazer

nenhum e olho

o senhor

com essas pupilas

que talvez jamais

reflitam o Pai

mas ora veem o pai

eu

mesmo pedaço

de carne

com dois olhos

peço perdão

em silêncio

pois sequer posso

dizer que não

mais há tempo

e mesmo assim

e porém

e no entanto

e contudo

pelo medo adversativo

de talvez abalar

uma sistema rudimentar

de alicerces

sob a casa

sob o quarto

sob esta cama

de hospital

emprestada

escolho

uma vez mais

o silêncio


*


in 'Medir com as próprias mãos a febre' (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2015).



no FB do autor

domingo, 1 de agosto de 2021

Landscape with a Hundred Turns, de Yanyi


When you turned into a hundred rooms,

I returned each month as a door

that opened only one.


When you turned into a hundred rooms

the wind flung through

each of them wailing


and left a hundred songs

in hopes you would return for it

and me and


once, finding a doe locked up,

the trees blued up

the mountain pass, I understood


you had transformed into your multiple,

as the rain is different

each step from the moon. Sleeping


in a hundred rooms, a hundred dreams

of you appear—though by day

your voice has frozen into standing stones.


When you turned into a hundred rooms,

I met with a mirror in each eye

your growing absence.


When I moved, the shadows without you

followed me. In the hundred rooms,

I cannot pick one,


for each combines into the other

where I piece-by-piece the shadows

you have ceased


to remember. As the rain

is different each day of the year,

when I turned for you


and hoped you’d return to me,

was it I who left

and you who remained the same?


For when you changed,

I changed

the furniture in the rooms.


A hundred birds flew over a hundred fields.

A mountain flowed into a hundred rivers

then ended.





via Chris de Gel


In a hundred rooms,

I turned and turned,

hoping to return to you.


O, the chrysanthemums grew

in the hundred rooms!


Far in the past and far in the future

were those numinous and echoing stars.