segunda-feira, 27 de setembro de 2010

trecho de: O tempo circular, HISTÓRIA DA ETERNIDADE, J L Borges

Se os destinos de Edgar Allan Poe, dos vikings, de Judas Iscariotes, e de meu leitor secretamente são o mesmo destino - o único destino possível -, a história universal é a de um único homem. A rigor, Marco Aurélio não nos impõe essa simplificação enigmática. (Imaginei há tempos um conto fantástico, à maneira de Léon Bloy: um teólogo consagra toda a sua vida a confutar um heresiarca; vence-o em complicadas polêmicas, denuncia-o, manda-o à fogueira; no Céu descobre que para Deus o heresiarca e ele formam uma única pessoa.) Marco Aurélio atesta a analogia, não a identidade, dos muitos destinos individuais. Afirma que qualquer lapso - um século, um ano, uma única noite, talvez o inapreensível presente - contém integralmente a história. Em sua forma extrema essa conjuntura é fácil de ser refutada: um sabor difere de outro sabor, dez minutos de dor física não equivalem a dez minutos de álgebra. Aplicada a grandes períodos, aos setenta anos de idade que o Livro dos Salmos nos atribui, a conjuntura é verossímil ou tolerável. Limita-se a declarar que o número de percepções, de emoções, de pensamentos, de viscitudes humanas, é limitado, e que antes da morte o esgotaremos. Repete Marco Aurélio: "Quem viu o presente viu todas as coisas: as que aconteceram no passado insondável, as que acontecerão no futuro" (Reflexões, livro VI, 37)

Em épocas de apogeu, a conjectura de que a existência do homem é uma quantidade constante, invariável, pode entristecer ou irritar: em tempos de decadência (como estes), é a promessa de que nenhuma afronta, nenhuma calamidade, nenhum ditador poderá nos empobrecer.

domingo, 26 de setembro de 2010

Geografias, de Julio Cortázar

Demonstrando que as formigas são as verdadeiras rainhas da criação (o leitor pode tomá-lo como uma hipótese ou fantasia: de qualquer maneira lhe fará bem um pouco de antropofuguismo), eis aqui uma página de sua geografia:


(P.84 do livro; assinalam-se entre parênteses os possíveis equivalentes de determinadas expressões, segundo a clássica interpretação de Gaston Loeb.)

"... mares paralelos (rios?). A água infinita (um mar?) cresce em certos momentos como uma hera-hera-hera (idéia de uma parede muito alta, que expressaria a maré?) Se a gente vai-vai-vai-vai (noção análoga aplicada à distância) chega à Grande Sombra Verde (um campo semeado, um mato, um bosque?) onde o Grande Deus eleva o celeiro para suas Melhores Operárias. Nesta região abundam os Imensos Seres Horríveis (homens?) que destróem nossos caminhos. Do outro lado da Grande Sombra Verde começa o Céu Duro (uma montanha?). E tudo isso é nosso, mas com ameaças".

Essa geografia foi objeto de uma outra interpretação (Dick Fry e Niels Peterson Jr.). O trecho corresponderia topograficamente a um pequeno jardim da Rua Laprida, 628, Buenos Aires. Os mares paralelos são dois pequenos canais de esgoto; a água infinita, um banho para patos; a Grande Sombra Verde, um canteiro de alface. Os Imensos Seres Horríveis insinuariam patos ou galinhas, embora não se deva descartar a possibilidade de que realmente se trate de homens. A respeito do Céu Duro desenvolve-se uma polêmica que não acabará tão cedo. A opinião de Fry e Peterson, que vêem nele uma parede de tijolos, opõ-se a de Guillermo Sofovich, que presume um bidé abandonado entre as alfaces.

Instruções para Cantar, Julio Cortázar

Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir o gosto de pão, um tato de dedos, uma sombra de cavalo.

Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca e por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

(sem título), Khlébnikov

Eu vi
Um vivo
Sol
Ou tom no
Outono
Só no
Sono
Azul.
Enquanto
Do canto
Dos teus calcanhares
Calcas os ares
Para o novelo
Da nebulosa,
Teu cotovelo
Em ângulo alvo
Alteando aos lábios.
Abril,
Abrir
A voz
Às provas
De
Deus.
Consonha
Em vôo
Aberto
O abeto,
Colhe os
Olhos
Azuis
Com os laços
Das sobrancelhas
E dos pássaros
Cerúleos.
No anil
Há mil.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

trecho de O Grande Serafim, de Adolfo Bioy Casares

"No mar nunca acontece nada, a não ser uma lancha ou a costumeira frota de golfinhos, que avança dentro do horário, ao meio dia rumo ao sul, depois ao norte; tais brinquedos bastam para que na costa as pessoas apontem com o dedo e prorrompam em júbilo. Moeda falsa é tudo o que recebe o observador: sonhos de viagens, de aventuras, de naufrágios, de invasões, de serpentes e de monstros, que desejamos porque não vêm."

O Esmagamento das Gotas, de Julio Cortázar

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha  em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.

Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

de barros, again

Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de belezas for esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que grita do meu olho não for mais escutado.
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
– Dormir, talvez chorar.

trecho de In On It (peça de Daniel MacIvor)


Uma palavra em minha própria defesa,
na qual eu luto contra clichês enquanto
procuro metáforas e me vem à mente
um casaco e algo que de repente se apaga.
Um casaco largado no chão
e algo que de repente…
Não é como uma vela – não é
como uma brisa curta e rápida
ou um brilho que se apaga
devagar e, depois, fumaça.
É súbito.
E não deixa traços.
Só um vazio inominável – um nome
daria muito peso – causado por algo que
de repente se apaga e não
deixa nada pra trás.
Nada, nem mesmo um nada
pra sustentar o nada.
E um casaco largado no chão.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Permanência, drummond

Permanência

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

Carlos Drummond de Andrade




em: http://leaoramos.blogspot.com/2008/08/no-lindo-poema-de-carlos-drummond-de.html