sábado, 2 de julho de 2016

Canção da infância, de Peter Handke, tradução de Júlia Frate Bolliger

Quando a criança era criança
Andava com os braços soltos balançando,
Queria que o riacho fosse um rio,
Que o rio fosse uma correnteza,
E essa poça, o mar.

Quando a criança era criança,
ela não sabia que era criança,
Tudo, para ela, tinha alma
E todas as almas eram uma.
Quando a criança era criança,
Não tinha opinião sobre nada,
Não tinha hábito nenhum,
sentava muito de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia cara alguma quando fotografada.
Quando a criança era criança,
Era o tempo das seguintes perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que eu estou aqui e não lá?
Quando começa o tempo e onde termina o espaço?
Não é a vida debaixo do sol um mero sonho?
Não é o que eu vejo, escuto e cheiro,
apenas o brilho de um mundo antes do mundo?
Existe realmente o Mal e pessoas
que realmente são as pessoas más?
Como pode ser que eu, que eu sou,
antes de ser, não era,
e que uma hora eu, que eu sou,
não mais serei o que eu sou?

Quando a criança era criança,
Engasgava com espinafre, ervilhas e arroz-doce
e com couve-flor no vapor
e come agora isso tudo e não só porque precisa.
Quando a criança era criança,
acordou uma vez em uma cama estranha
e agora isso acontece sempre,
muitas pessoas se mostravam belas para ela,
e agora só num acaso feliz,
ela tinha uma imagem clara do paraíso
e pode agora, no máximo, ter um pressentimento,
podia não pensar para si o nada
e hoje se arrepia ante isso.

Quando a criança era criança,
brincava com entusiasmo
e agora, tem tanto gosto pelo que faz, como antes, mas só
quando se trata de trabalho.
Quando a criança era criança,
pão, maçã, eram alimento suficiente,
e ainda é assim.

Quando a criança era criança,
caíam-lhe as frutinhas na mão como apenas frutinhas
e agora ainda caem,
nozes frescas faziam sua língua ficar áspera
e ainda fazem,
teve em cima de cada montanha,
a ansiedade pela montanha sempre mais alta,
e em cada cidade,
a ansiedade pela cidade ainda maior,
e ainda é assim sempre,
agarrava a árvore no topo atrás da cereja  em euforia
como ainda hoje também,
uma vergonha na frente de cada estranho
e ela, toda vez,
esperou pela primeira neve,
e ainda sempre espera.

Quando a criança era criança,
jogou um pedaço de pau como uma lança contra a árvore,
e ela ainda hoje trepida lá.

Izaac Augusto me apresentou, mas a tradução que achei foi:
http://economia.estadao.com.br/blogs/joao-villaverde/domingo-2/

Nenhum comentário:

Postar um comentário