terça-feira, 23 de abril de 2019

alguns poemas de Raphael Sassaki

astrologs

sinais de leite no degrau de estrelas
passos predestinados

seu bazar beneficente
de corações amorfos

escaladas de mãos dadas
com espíritos na aclimação

dorme debaixo de astros grávidos

barulho de chuva em pesadas
enteléquias no rolê

sua boca selvagem forma
sortilégios primitivos

há desastres abertos
nas costelas rachadas
da catedral da sé

e a rua fecha os olhos como nosso amor

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kiss me deadly

você diz: da mente rachada jorra o arco-íris
amor, palavras não vão salvar sua alma

(mas seus olhos são os relâmpagos
mais bonitos no céu apocalíptico
de são paulo)

ei, você não sabia
que estamos nadando no abismo?
que estamos fabricando mortes?
que estamos escondidos em teatros
de sonho elétrico?

que somos só bichos hipnotizados por
palavras
cometendo todos os dias os mesmos crimes

hoje choveu e lembrei que temos fogo por dentro

a vida não volta
e isso se chama liberdade

você diz: a dor da diferença
(é a felicidade das coisas
aí é quando sinto que vou acordar

meu cérebro é um monstro de 100 milhões de anos
deitado na cama

é uma língua mais velha que a gramática
e todas as palavras só formam constelações de loucuras
que chamamos mentiras

mas agora é quase meia noite
e as luzes da cidade já se enfiam
no silêncio do mundo

você diz: nós somos vida após a morte

você diz: foi um soco no escuro que te fez cair aqui
você diz: há um ruído pesado nestes sonhos
foi quando


via: https://escamandro.wordpress.com/2019/04/21/raphael-sassaki/

VÍNCULO, de Júlia de Carvalho Hansen

Vem por baixo da base a tua presença.
A tua presença me ativa a kundalini
alcançando a elevada onisciência
de uma cota quente
até a lombar pulsando.
Eu te sinto como um reforço
caído do céu pra me ajudar a ser quem sou.
Eu poderia me esforçar e te chamar de verão
mas você é a magia do vento combinado com o calor
rangendo o zinco dos telhados velhos desse bairro.
É o anjo de fogo que você desata em mim
o gatilho é o incêndio seu olhar, a vespa
zunindo em cima do capim.
O corpo todo intencionado
arrepio na coluna ondulando
pra dentro do casulo
só consegui me acalmar o suficiente
escrevendo 30 páginas
na primeira pessoa do plural
que se enrola de muitos modos
e se atém a tantos
nós.


via: facebook da autora

domingo, 21 de abril de 2019

Poema dum Funcionário Cansado, de António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só



via: Arthur Moura Campos

[não quero ter você], de Rupi Kaur

não quero ter você
para preencher minhas partes
vazias
quero ser plena sozinha
quero ser tão completa
que poderia iluminar a cidade
e só aí
quero ter você
porque nós dois juntos
botamos fogo em tudo

In: “Outros jeitos de usar a boca”, p. 59



via Kamilly

[se humanos fossem insetos], de Janaina Tokitaka

se humanos fossem insetos
não tenho dúvidas que seríamos
o besouro rola-esterco
arrastando eternamente
uma meticulosa esfera
moldada a partir de restos


do livro Pequenas armaduras
via Maria Luiza Rodrigues Souza

trecho de Donne,"O Êxtase", tradução de Augusto de Campos

“But as all several souls contain
Mixture of things, they know not what,
Love, these mixed souls, doth mix again,
And makes both one, each this and that”.

“Mas assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas”.


in: Donne, Augusto de Campos e a tradução criativa
de Ana Helena Souza