sábado, 18 de abril de 2020

[besouro], de Janaina Tokitaka

se os humanos fossem insetos
não tenho dúvida que seríamos
o besouro rola-esterco
arrastando eternamente
uma meticulosa esfera
moldada a partir de restos





via Maria Luiza R Souza

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Oração do milho, de Cora Coralina

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das
     lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem
   lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão
      do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a
     vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja
      dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que
      amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Trecho de A pequena suburbana, de Tom Zé

A pequena suburbana naquela periferia
Uma simples vira lata no fundo da via láctea
Sem nome sem dinastia
Pois não é que essa vadia se pinta como distinta
E ainda pensa e pondera ai quem me dera
Sei lá… uma atmosfera

Mas vejam, vejam só que a dita cuja
É uma mera suburbana e dos ares que se dá
E a pose com que se abana na brisa que ela mesma
Criou pra se refrescar, pois esta louca cigana
Ainda pensa e pondera ai quem me dera
Sei lá.. Uma atmosfera




Lidia me envia e diz: Isso me contempla tanto

domingo, 12 de abril de 2020

Cartomante, de Luiza Mussnich

tomar decisões
é a melhor forma
de prever o futuro


via opoemaensinaacair

[te invento], Clarice Lispector

Eu te invento, ó realidade!


via filoeliteratu

[entreabrir o longe], de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Hoje vou entreabrir o longe,
ficarei a olhar o regato.



via opoemaensinaacair

Tempo, de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Dia após dia o sol passa
pelas fotografias. Vejo-o passar
nos sorrisos felizes que fizemos um dia.




via opoemaensinaacair

Fim de tarde em S. Lázaro, de Eugénio de Andrade

Estou sozinho. Nas estantes, restos
da minha vida. É quase
no livro sobre os telhados.
No livro abandonado nas mãos
corre um rio: à deriva,
duas ou três coisas que foram
minhas: um punhado de amoras,
a porosa delícia do barro,
essas nuvens, essas
aves num céu branco de trigo,
um sorriso
que também era um copo de água.


via opoemaensinaacair

[Homens que são], de Daniel Faria

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios foras dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repouse.

Homens que são como froteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar



via opoemaensinaacair

Medo, de Raymond Carver


Medo de ver um carro da polícia estacionar no passeio.
Medo de adormecer à noite.
Medo de não adormecer.
Medo de que o passado acorde.
Medo de que o presente levante voo.
Medo de que o telefone toque na calada da noite.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da mulher da limpeza que tem uma mancha no rosto!
Medo dos cães que me asseveraram que não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter muito e as pessoas não acreditarem nisso.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de chegar atrasado e medo de chegar antes de toda a gente.
Medo da letra dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim e que me vá sentir culpado.
Medo de ter que viver com a minha mãe na sua velhice e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.
Medo de acordar e descobrir que te foste embora.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que aquilo que amo se torne letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver muito tempo.
Medo da morte.

Eu já disse isso.







Raymon Carver, USA (1938-1988)
Carver morreu aos 50 anos, vítima de cancro. A sua sepultura em Port Angeles (Washington), tem a seguinte inscrição:
“E conseguiste o que querias da vida, mesmo assim?”
“Consegui.”
“E o que querias?”
“Saber que sou amado, sentir-me amado aqui na terra.”

(Via Jorge Sousa Braga)

post de opoemaensinaacair

Poema de amor de António e Cleópatra, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Pela tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.

poema de Alice Sant'Anna

pegue um lápis e marque um ponto
no centro de uma folha
a solidão é tudo que está em volta


via mulheresqueescrevem

poema de Masaoka Shiki em A-Pedra-Que-Mata

Solidão -
após o fogo de artifício
uma estrela cadente.



via opoemaensinaacair

Pele de Tartaruga, de Amalia Bautista

De novo te surpreendo com o arco
preparado para a acção mais ofensiva.
Depois de tanto sangue em tanto ataque,
o tempo ofereceu-me a sua couraça.
De novo atiras afiadas flechas,
mas desta vez embatem contra uma
dura pele de tartaruga. Não me ferem.

Lua Cheia, de José Carlos Barros

a lua é redonda
para caber
nos teus olhos


via opoemaensinaacair

Poema de Amor, de Jorge Sousa Braga

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
               te coubesse no dedo


via opoemaensinaacair

poema de Mário de Sá Carneiro

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
      Pilar da ponte de tédio
      Que vai de mim para o Outro.

gargalhar, de cathy blanco

gargalhar
é beber o riso
no gargalo

Maíra Ferreira em livro "esses dias que estamos vivendo há ano"

(deus esses dias que estamos vivendo há anos)
não existe palavra
que os impeça de acontecer


via mulheresqueescrevem

Bénédict Houart

apetece-me palavras
para entreter a boca enquanto
não as espanta o grito que
já espreita debaixo da língua


via opoemaensinaacair

José Tolentino Mendonça em A Papoila e o Monge

Deve algures existir
a porção de verdade
que esteve ao nosso alcance e não vimos.

via opoemaensinaacair

André Tecedeiro em O Número de Strahler

eu usava uma armadura
que me traiu duas vezes:

foi insuficiente para defender o golpe
foi eficaz a esconder a ferida.

Via opoemaensinaacair

em O Tempo Dividido, Sophia de Mello Breyner Andresen

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Via opoemaensinaacair