Ricardo Domeneck, in 'Carta aos anfíbios' (2005)
EU DIGO SIM ATÉ DIZER NÃO
as circunvoluções
e caprichos
da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono
sopro
vento
em que
uma primeira esfera
de ar impele
outra ao movimento
ou em alto-mar
temendo menos a ausência
de resgate na superfície
que a povoação alheia
e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real
só a lucidez abre caminho
para o imaginário
mas a carne insiste
no contínuo
onde as pedras são comestíveis
e exige-se a fome;
durante a transfiguração
em que anjos e bandejas
circulam seu jardim
é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
é com o linho enfaixando toda a
pele e a pedra
separando esta caverna
da saúde do ar
que se espera um Lázaro!
Lázaro! e um segundo
antes da asfixia
crer ainda
que seja este o meu
nome, seja ESTE o MEU
nome
se cada folha parece
percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
para o vazio
o mundo
é tão simpático
da montanha que fala resta
a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta
mão em mão com passos lentos
mas foi Isaque a carregar a lenha
nas costas, tomar o fogo e o cutelo
na mão; e caminhou junto de seu pai
todo sacrifício é aparente e inútil,
nenhuma
árvore camufla
suas frutas:
as expõe
ao pássaro, ao
chão, ao suco
na garganta, à recusa
do estômago
por
tanto
percorro os andaimes
de equilíbrio precário
:
ferro oxidável
saudoso
de água
e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
espera que seu corpo, de repente
forte, sobreviva ao sacrifício,
como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca
– Ricardo Domeneck, in 'Carta aos anfíbios' (2005)
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