terça-feira, 17 de agosto de 2021

A PACIÊNCIA DE SITIS, de Adriane Garcia



Você acha que você é o único justo que sofre, Jó?

Você se acha tão especial que se senta nesse monturo

De vermes e de sujeira e passa o dia

E as noites choramingando

E falando com esse seu deus surdo

E a louca sou eu?


Você acha o quê? Acha que todas essas crianças

Que passam fome à nossa volta

Pecaram contra o seu deus?

Que todos os pais e as mães que perderam

Seus filhos para a calamidade

Pecaram, nesta medida, contra o seu deus?


Você perdeu seus dez filhos

E eu, Jó?

Foi de mim que eles nasceram

Fui eu que cuidei de cada um deles

Acha que a morte deles dói mais em você

Do que em mim?


Você vê clarões no meio da noite

E ouve vozes de anjos e demônios

Você não faz ideia dos demônios

Que eu tenho visitado à noite

Para trazer o pão desta casa

Para não nos deixar à míngua, Jó


Sabe onde estive ontem? Olhe para mim!

Você nem reparou na vergonha

Dos meus cabelos curtos

Porque você não repara em mais nada, Jó

Eu vendi os meus cabelos

Para haver água nas nossas jarras


Pensa que a vida espera enquanto você chora?

Acha que cessam de nos cobrar ofertas

No templo do seu deus caridoso?

Sou eu, Jó, que durante o dia, andarilha

Feito uma escrava, saio de casa em casa

Oferecendo minhas mãos para ficarmos vivos


Esses seus amigos trazem alguma coisa?

A única coisa que vi fazerem até agora 

É encherem a sua cabeça com bobagens

Enquanto isso, lá vai a louca da Sitis

Providenciar as ervas do seu unguento

Que você despreza, que você não usa


Porque fica esperando esse seu deus surdo

Que só te oferece coleira e ameaças

Que se excita com a sua autopiedade

Enquanto você se curva

Buscando arrependimento

De quê, Jó?


Se sempre agimos como é possível agir

Neste mundo em que estamos nós por nós

Se o que vemos são ímpios exibindo felicidades

Enquanto os oprimidos só recebem castigos

Se a ordem do mundo se perde 

Na doença, na guerra, no saque


Onde está o seu deus, Jó?

Você me diz que nasceu nu e voltará nu

Mas eu tenho carregado a minha dor 

Para te vestir as roupas

Agora os sacerdotes vêm e ensinam

Que é preciso sofrer e ter calma


Pois eu digo, Jó

Se você não vai lutar contra o sofrimento

Se você não vai reconstruir 

Nosso pequeno mundo comigo

Amaldiçoa logo esse deus

E morre.



via fb da autora

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