quinta-feira, 28 de julho de 2011

trecho de Mundos de Vidro, de Alessandro Baricco

Ele os via partir: via o instante em que a massa informe de cavalos e cavaleiros se comprimia como uma mola pressionada ao máximo para, em seguida, soltar-se com toda a força possível, em um tropel sem direção e hierarquia, um amontoado de corpos e rostos e patas, tudo no ventre de uma nuvem de pó que se erguia, impregnada de gritos e rodeada de um silêncio total, um instante de exasperante nada, antes que a badalada do sino, lá em cima do campanário, liberasse tudo e todos daquela já oprimente hesitação e rompesse os diques da espera, para soltar a frenética maré que era a corrida propriamente. 


(do capítulo 1 da terceira parte)

trecho de A Morte do Príncipe, de Fernando Pessoa

[PRÍNCIPE] – Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina.
Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade.
E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida?




(Texto integral: http://arquivopessoa.net/textos/4166)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Ver, de Kandínski

o Azul, o Azul se alçava, se alçava e caía.
O Agudo, o Fino assobiava e penetrava, mas não saía.
De todos os lados ressoava.
O Marrondenso como que suspenso para sempre.
        Penso. Penso.
Abre ainda mais amplo os braços.
      Amplo. Amplo.
Cobre o teu rosto com um lenço vermelho.
E pode ser que nada se tenha ainda movido:
                              só você se moveu.
O branco salto após o branco salto.
E após o branco salto ainda um branco salto.
E neste branco salto um branco salto. Em cada
             branco salto um branco salto.
E este é o mal, é que não vês o turvo.
            no turvo é que ele está.
É aí que tudo começa..............................................
............................................Rompeu-se ................









retirado de Poesia Russa Moderna, organizado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman.

terça-feira, 19 de julho de 2011

trecho de Carta sobre Emília, de Adolfo Bioy Casares (em Histórias de amor)

"Quantas mulheres passarem pelo estúdio! Esqueceu-se de Irene, senhor Grinberg? Era alta, pálida, compridas tranças loiras, e quando se punha de costas para que eu a desenhasse, seus pés caíam em ângulo admirável. O senhor a observava com fauces de lobo esfaimado. Esqueceu-se também da nossa Antoninha, famosa por aquele desvio de um olho, que o senhor chamava sua loucura particular? Penso em todas elas com alguma saudade, mas se as recordo em separado eu me julgo um sujeito de sorte por estarem longe."