terça-feira, 22 de agosto de 2017

"Poética" e "Poétique", de Leo Gonçalves

retesar a corda vocal
sob um eixo de 440 hertz

sistematicamente
desafi(n)ar

afiar a fio de faca
o v da seta-verbo

untar a flecha
em ervas da mata

erva que cura
erva que mata

depois de de-
cantar: atirar ao ar

ferir os ouvidos
tim tim por tim tímpano



via: http://www.mallarmargens.com/2013/10/poemas-com-boca-por-leo-goncalves.html


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retendre la corde vocale
sur un axe de 440 hertz

systématiquement
(d)étonner

et noter à la pointe du couteau
le v de la flèche-verbe

oindre la flèche
d’herbes sauvages

herbe qui soigne
herbe qui tue

après qu’on a dé-
chanté : lancer en l’air

percer les oreilles
œil pour œil temps pour tambour



via: http://www.salamalandro.redezero.org/retendre-la-corde-vocale-anthologie-de-la-poesie-bresilienne-vivante/

Segunda Rua Cristina, de Apollinaire

A mãe da zeladora e sua filha vão liberar o caminho
Vem comigo essa noite se você for homem
Um só já é bastante para que vigie a porta
Enquanto o outro sobe a escada

Três lamparinas iluminam
A velha está no fim
Quando você terminar vamos jogar um gamão
O maestro com dor-de-garganta
Chegando na Tunísia pinte pra fumar um haxixe

Vixe quase rimou

Pilhas de pires flores um calendário
Pim pam pim
Devo quase 300 paus pra locatária
Prefiro cortar o meu que dar pra ela tá ligado

Caio fora às 8 e 27
Seis espelhos ficam se encarando
Tô achando é que nos metemos numa fria
Caríssimo senhor
Tu é mesmo um bosta
O nariz daquela moça parece um verme
A Luiza esqueceu o casaco
Não tenho casaco mas também não tenho frio
O dinamarquês fuma seu charo enquanto checa os horários
O gato preto cruza o restaurante

Os crepes-suzettes estavam demais
Fonte verte
Vestido negro como suas unhas
Isso é completamente impossível
Aqui está senhor
O anel de malaquita
Chão coberto de serragem
Então é verdade
A garçonete ruiva se mandou com o livreiro

Um jornalista que conheço mais ou menos

Olha Jaques é extremamente sério o que vou te contar

Companhia de navegação mista

Ele diz o senhor gostaria de dar uma olhada no que eu pinto
Eu só tenho uma criada

Depois do almoço Café Luxemburgo
Chegando lá me apresenta um gordão
Que diz pra mim
Escute isso seria chique
Em Smyrna em Nápoles na Tunísia
Meus Deus do céu quando é que estive
Pela última vez na China
Deve fazer o quê uns oito ou nove anos
Honra é um troço que depende da hora
Bati




Tradução: Rodrigo Garcia Lopes
via: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2006/11/segunda-rua-cristina-de-guillaume.html 

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Testemunho, de Paul Auster

No trigo alto do inverno
que nos levou através
dessa terra de ninguém,
nas cópulas de nossa raiva
sob essas ervas brancas sem nome,
e por hospedar, perpetuamente,
uma flor no inferno, falarei a você
do abrir de meu olho
para além do ser,
de meu ser além do ser
só alguém,
e como poderia absolvê-la
desse segredo, e provar pra você
que não estou mais só,
que não estou
nem mesmo perto
de mim.



(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes)

via: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2006/09/testemunho-poema-de-paul-auster.html

AUTO-RETRATO ÀS DUAS HORAS DA MANHÃ, dia 29 de agosto, 1959, de Heiner Müller

Sentado em frente à máquina de escrever. Folheando
uma história de detetive. Perto do final
Descobri o que você já sabia;
A secretária de face macia e de barbas imensas
É a assassina do senador
E o amor do jovem sargento membro da comissão de homicídio
Pela filha do almirante será recíproco.
Mas você não vai omitir nem uma página.
Às vezes enquanto vira a folha você lança um rápido olhar
Sobre a página em branco na máquina de escrever.
Quer dizer que evitaremos isso. Pelo menos isso.
No jornal: em algum lugar uma cidade foi
Arrasada por bombas e reduzida a ruínas.
Que mal, mas o que posso fazer por vocês.
O sargento está prestes a evitar um segundo assassinato
Embora a filha do almirante ofereça (pela primeira vez!)
Seus lábios pra ele, negócio é negócio.
Você fica sem saber quantos morreram, o jornal sumiu.
No quarto ao lado sua esposa sonha com seu primeiro amor.
Ontem ela tentou se enforcar. Amanhã
Vai cortar os pulsos ou sei lá o quê.
Pelo menos ela tem um objetivo em mente
E ela vai chegar lá, de um jeito ou de outro.
E o coração é um cemitério espaçoso.
A história de Fátima no Notícias da Alemanha
Estava tão mal escrita que eu cai no riso.
É mais fácil entender a tortura que a descrição da tortura.
A assassina caiu na armadilha
E o sargento abraça sua recompensa,
Sabendo que agora você já pode dormir. Amanhã é um outro dia.



(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes, com a colaboração de Simone Homem de Mello)

via: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2006/09/auto-retrato-s-duas-horas-da-manh-dia.html

LANA TURNER DESMAIOU!, de Frank O. Hara

Lana Turner desmaiou!
eu trotava pela rua e de repente
começou a chover e a nevar
e você falou que era granizo
mas granizo machuca a cabeça
essa era neve mesmo
e chovia e eu morrendo de pressa
pra te encontrar mas o trânsito
se comportava mal como o céu
e de repente vejo a manchete
LANA TURNER DESMAIOU!
nenhuma neve em Hollywood
nenhuma chuva na Califórnia
já fui num monte de festas
e já dei cada baixaria
mas nunca desmaiei pra valer
ah Lana a gente te ama levanta mulher


Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

via: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2017/06/lana-turner-desmaiou-de-frank-ohara.html

Medo e o Macaco, de William S. Burroughs

Coceira irritante e o perfume da morte
No sussurrante vento sul
Cheiro de abismo e nada
O Anjo Vil dos vagabundos uiva pelo apartamento
Como um sono cheirando a doença
Sonho matutino de um macaco perdido
Nascido e sufocado por velhas fantasias
Com pétalas de rosa em frascos fechados
Medo e o macaco
Gosto amargo de fruta verde ao amanhecer
O ar lácteo e picante da brisa marinha
Carne branca denuncia
Teus jeans tão desbotados
Perna sob sombras do mar
Luz da manhã
No néon celeste de um armazém
No cheiro do vinho barato no bairro dos marujos
Na fonte soluçante do patío da polícia
Na estátua de pedra embolorada
No molequinho assobiando para vira-latas.
Vagabundos agarram suas casa imaginárias
Um trem perdido apita vago e abafado
No apartamento noite gosto d'água
Luz da manhã em carne láctea
Coceira irritante mão fantasma
Triste como a morte dos macacos
Teu pai uma estrela cadente
Osso de cristal no ar fino
Céu noturno
Dispersão e vazio.



Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça


via: http://estudiorealidade.blogspot.com.br/2006/09/medo-e-o-macaco-poema-de-william-s_14.html

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Declaração, de António José Forte

Eu de barba branca a tiracolo
rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
como um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-lo
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo pra baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado


via: Modo de Usar https://www.facebook.com/165781520116872/photos/a.172076606154030.41436.165781520116872/1746118595416482/?type=3&theater

quinta-feira, 27 de julho de 2017

trecho de Ana Cristina Cesar

I
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.



via: Abigail pelo face

domingo, 23 de julho de 2017

Bestiário, de Jussara Salazar

a minha guerra será a tua guerra
não a guerra dos homens
mas a dos pássaros desgarrados

o nosso bestiário será esse
o do contrário nunca jamais
e a minha casa será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o do contrário e dos urubus diários
e a minha carne será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o dos monstros submersos que eunoé lembrará
quando a minha cruz for a tua guerra

então o nosso bestiário será esse
canto perdido sem prumo retalhado
sem dor sem beleza nem terra

e então a minha guerra será a tua guerra


via: Benedito

Tiradeira de leite, de Everardo Norões

entre os dedos
o fulgor do leite
filtra a desordem solar
o curral aprisiona
o sossego dos bichos
o negro viscoso do olho
a refletir vasilhas
o ramo da árvore
a sombra do regaço
cedo a manhã cheira
e tudo se acorda
na precisão do mato
ou do alento
que chega do açude
no remanso das entranhas
dessas nuvens lentas
lentas
lentas
lentas


via: Benedito no facebook

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Recordação do país infantil, de Oswald de Andrade

A estação da estrela d'alva. Uma lanterna de hotel. O mar cheiinho de siris.
Um camisolão. Conchas.
Vamos à praia das Tartarugas!
O menino foi pegado dando, atrás do monte de areia.
O carro plecpleca nas ruas.
O trem vai vendo o Brasil.
O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus.
Depois todos morrem.

sábado, 1 de julho de 2017

sábado, 10 de junho de 2017

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Os sons do ofício, de Pio Vargas

É porque recolho o vário
no aviário das vértebras
e me há um silo de células
e me há um quase-aquário,
que o poema se me chega,
estuário.
Que me importa
a sina jugular das fases,
a vida conjugal das frases
e o semblante cínico
das fezes,
se não faço poemas
como quem defende teses.
Faço poemas
para que passem os dias
e pascem os rebanhos
e os oceanos pasmem
ante o naufrágio
de todas as datas
no calendário-lanho.
Ou seja, faço-os
como quem viceja
os laços do arremesso
como quem vislumbra
silêncio nos entulhos
e aprendeu a estrutura ideal
para montar barulhos
sob a língua mais banal.
Faço-os
como quem lambe oásis no planalto,
deixado pelas bases
de um simples sobressalto.
É como se o ego
coubesse inteiro
na determinação de um prego
que me fixa exílios sob a carne
mas que também aciona
os gatilhos do alarme.





via: abigail pelo face

o poeta é mãe das armas, de Torquato Neto

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral -
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.

A poesia é o pai da ar
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.a
r: em primeiríssimo, o lugar

poetemos pois

torquato neto / 8 nov. / 1971 & sempre
(Os últimos dias de Paupéria / 1973)


via: abigail pelo face

quinta-feira, 23 de março de 2017

Bacanal, de Manuel Bandeira

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
– Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não domo!…
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!

Sétimo Céu, de Patti Smith

Ó Rafael. Anjo guardião. No amor e no crime
todas as coisas movem-se em setes. sete compartimentos
no coração. as sete elaboradas tentações.
sete demônios lançados sobre Maria Madalena prostituta
de Cristo. as sete maravilhosas viagens de Sinbad.
sin/bad*. E o número sete marcado para sempre
na fronte de Caim. O primeiro homem inspirado.
O pai do desejo e assassinato. Mas o dele não foi
o primeiro êxtase. Considere a mãe dele.
Eva praticou o crime da curiosidade. É como o ditado
diz: matou pela buceta. Uma maçã ruim estragou
o tiro inteiro. Mas tenha certeza que não foi a maçã.
Uma maçã parece com uma bunda. É a fruta dos maricas.
Deve de ter sido um tomate.
Ou melhor ainda. Uma manga.
Ela mordeu. Temos que culpa-la. abusar dela.
pobre doce puta. talvez haja mais para a história.
pense em Satã como algum garanhão.
talvez seus joelhos estivessem abertos.
cobras de satã no meio delas.
elas abrem mais.
cobras em suas coxas
esfregando-se  contra ela por um tempo
mais do que a árvore do conhecimento era sobre
ser comido… ela estremece seu primeiro estremecimento
prazer jardim do prazer
ela estava arrependida
somos sempre meninas
ela era uma boa leiga
só deus sabe


(in: http://guarita.tumblr.com/post/158600171470/uma-seleta-dos-primeiros-poemas-da-patti-smith)

quarta-feira, 22 de março de 2017

Ofício de amar, de Al Berto

já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna de animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos  nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo

Uma flor num buraco da calçada, de Henrique do Valle

quando soltaram os cachorros loucos
eu estava fazendo chá
de ervas do campo

e de repente o espanto
tremendo a chaleira
e bombeando medo

larguei as ervas e danado
precipitei-me à janela

de onde vi
enormes matilhas
com olhos cheios de negra espuma

a espuma invadia a rua
e abraçava os postes, que caíam
cheios de óleo e náusea

engolia as pessoas
que alucinadas
enchiam o ar de berros

depois os cachorros foram embora
eu voltei ao meu chá

e lá fora a solidão
e uma flor quase despercebida



via: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2017/01/henrique-do-valle-1958-1971.html

terça-feira, 21 de março de 2017

Autobiografia, de Henrique do Valle

Na hora morta do entardecer
eu recolho meus pedaços
pendurados no arco-íris
E quando a noite desce
eu rolo em meu leito
sonhando um sonho agreste
Depois, de manhã eu me acordo
berrando essa minha puta vida
que passa em brancas nuvens


via Lidia