segunda-feira, 5 de agosto de 2019

badland, de Matilde campilho [Lidia postou matilde campilho hoje]

Não sei se sou homem
já não sei se sou
homem
se sou besta
se tenho olhos azuis
ou mesmo se visto
camisa azul.
Também já não sei
se seguro um toco
meio ardido, aqui sentado
na esplanada desta cidade
cujo nome é Tavizkam.
Não sei se sobre meu ventre
foi depositada uma concha, há uns
1000 dias atrás.
Não sei se sou automático, se devo
trabalhar, pagar o revólver a prestações,
fazer remo, correr na calçada, usar
camisa esquadrinhada, escrever em
cedro esquadrinhado. Eu não sei
se possuo uma barca, se possuo
ossos que podem apodrecer
a qualquer hora. Eu não sei os nomes
dos poetas todos mas sei que os poetas
todos são os novos roqueiros. Eu não
sei, só sei que antes julguei que
os poetas eram escavadores.
Aquele amor
aquele que eu pensei
que se despedaçaria como
um meteorito no Minnesota
(uma coisa assim
estrondosa abusiva
gritante maravilhosa
estilhaço prolongado
cheio de uivos)
afinal caiu silencioso
como um aviãozinho de papel
passeando em Itaparica
em dia da apanha dos morangos.
Não sei se sou homem,
se sou mulher. Mas este
é o caminho do estio
e por perto passam os bois.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Movimento da Espada, de Drummond



Estamos quites, irmão vingador.
Desceu a espada
e cortou o braço.
Cá está ele, molhado em rubro.
Dói o ombro, mas sobre o ombro
tua justiça resplandece.
Já podes sorrir, tua boca
moldar-se em beijo de amor.
Beijo-te, irmão, minha dívida
está paga.
Fizemos as contas, estamos alegres.
Tua lâmina corta, mas é doce,
a carne sente, mas limpa-se.
O sol eterno brilha de novo
e seca a ferida.

Mutilado, mas quanto movimento
em mim procura ordem.
O que perdi se multiplica
e uma pobreza feita de pérolas
salva o tempo, resgata a noite.
Irmão, saber que és irmão,
na carne como nos domingos.
Rolaremos juntos pelo mar…
Agasalhado em tua vingança,
puro e imparcial como um cadáver que o ar embalsamasse,
serei carga jogada às ondas,
mas as ondas, também elas, secam,
e o sol brilha sempre.
Sobre minha mesa, sobre minha cova, como brilha o sol!
Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,
na aparência roubando-o.
Já não posso classificar os bens preciosos.
Tudo é precioso…
e tranquilo
como olhos guardados nas pálpebras.


via: 
https://incensofossemusica.wordpress.com/2011/09/15/movimento-da-espada/

Não Tenho Pressa, de Alberto Caeiro, heterónimo de Pessoa

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Via: http://www.citador.pt/poemas/nao-tenho-pressa-alberto-caeirobrheteronimo-de-fernando-pessoa

terça-feira, 11 de junho de 2019

alguns poemas de Safo

dois poemas em [tradução Haroldo de Campos], em “Crisantempo: no espaço curvo nasce um”. de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2004:

Safo – Fr. 5
morto o doce adônis
e agora citeréia
que nos resta?
lacerai os seios donzelas
dilacerai as túnicas

^^
*
^^

gênese do poema
vem
lira quelônia
divina:
vira
sompoema

--
.
--

dois poemas em “Poemas da Antologia Grega ou Palatina, séculos VII a.C. a V a.c”. [seleção, tradução, notas e prefácio José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1995:

VII: 489
Eis as cinzas de Timas: morta pouco antes de casar-se,
Perséfone a acolheu em seu quarto sombrio.
Assim que ela morreu, as amigas, tão jovens quanto ela,
cortaram-se os cabelos com ferro afiado.

^^
*
^^


VII: 505
Menisco, pai de Pelagon, pescador, deixou-lhe na tumba
rede e remo, mementos de sua vida mísera.



via: https://www.revistaprosaversoearte.com/safo-poemas/

domingo, 2 de junho de 2019

[into the strenuous briefness], de e.e. cummings



i smilingly
glide.  I
into the big vermilion departure
swim, sayingly;

(Do you think?)the
i do,world
is probably made
of roses & hello:

(of solongs and,ashes)


via luana marinho

domingo, 12 de maio de 2019

trecho de grande sertão veredas, de guimarães rosa

“A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Lídia, de Ricardo Reis, in Odes

Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento — Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos inocentes da decadência. Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço.



via Lidia, a própria

terça-feira, 7 de maio de 2019

O aparecimento das caveiras no lençol da Via Láctea, de Matilde Campilho

Minha cara está se envelhecendo
antes de mim
Reconheço meus deuses
e se supõe que Jonas
também tenha reconhecido a baleia
antes da grande meditação
antes do grande silêncio
ou antes de escavar
a costela de sal
Pratico mergulho-prego
desde a rocha mais alta
como é próprio da estação
E antes do salto
sempre peço a Deus
que a guerra não me seja
de todo indiferente
Porque foi assim
que me ensinou a santa
Foi assim que me segredou
a estrada de fogo
da oitava região
Há uma seleção de catástrofes
se apresentando firmes
Coisas do tipo
A figura da menina russa
que passa no parquinho
acenando 3 pêssegos
dentro da bolsa de plástico
Como se fosse um arqueiro
fazendo show-off
de suas setas douradas
no fio solar de Agosto
Minha cara está marcada
por revoluções e iodo
por estilhaços de cobre
e pelo silêncio profundo
de los angelitos negros
à hora do café com açúcar
Carrego nas costas
a espada de plástico
que corta o friso nublado
entre signo e ascendente
Sim eu me aproximo
cada vez mais de meu ascendente
enquando faço pazes com meu sol
Reconheço meus heróis
aqueles que vieram antes
e os que virão mais tarde
Recorto suas descobertas
mas pelo sim pelo não
ainda guardo em meu bolso
a nota de cinco dólares
que me ofereceu o nômade
que cantava no deserto.


via Lidia
via http://revistamododeusar.blogspot.com/2013/07/poema-inedito-de-matilde-campilho.html?m=1



terça-feira, 23 de abril de 2019

alguns poemas de Raphael Sassaki

astrologs

sinais de leite no degrau de estrelas
passos predestinados

seu bazar beneficente
de corações amorfos

escaladas de mãos dadas
com espíritos na aclimação

dorme debaixo de astros grávidos

barulho de chuva em pesadas
enteléquias no rolê

sua boca selvagem forma
sortilégios primitivos

há desastres abertos
nas costelas rachadas
da catedral da sé

e a rua fecha os olhos como nosso amor

///////+//////

kiss me deadly

você diz: da mente rachada jorra o arco-íris
amor, palavras não vão salvar sua alma

(mas seus olhos são os relâmpagos
mais bonitos no céu apocalíptico
de são paulo)

ei, você não sabia
que estamos nadando no abismo?
que estamos fabricando mortes?
que estamos escondidos em teatros
de sonho elétrico?

que somos só bichos hipnotizados por
palavras
cometendo todos os dias os mesmos crimes

hoje choveu e lembrei que temos fogo por dentro

a vida não volta
e isso se chama liberdade

você diz: a dor da diferença
(é a felicidade das coisas
aí é quando sinto que vou acordar

meu cérebro é um monstro de 100 milhões de anos
deitado na cama

é uma língua mais velha que a gramática
e todas as palavras só formam constelações de loucuras
que chamamos mentiras

mas agora é quase meia noite
e as luzes da cidade já se enfiam
no silêncio do mundo

você diz: nós somos vida após a morte

você diz: foi um soco no escuro que te fez cair aqui
você diz: há um ruído pesado nestes sonhos
foi quando


via: https://escamandro.wordpress.com/2019/04/21/raphael-sassaki/

VÍNCULO, de Júlia de Carvalho Hansen

Vem por baixo da base a tua presença.
A tua presença me ativa a kundalini
alcançando a elevada onisciência
de uma cota quente
até a lombar pulsando.
Eu te sinto como um reforço
caído do céu pra me ajudar a ser quem sou.
Eu poderia me esforçar e te chamar de verão
mas você é a magia do vento combinado com o calor
rangendo o zinco dos telhados velhos desse bairro.
É o anjo de fogo que você desata em mim
o gatilho é o incêndio seu olhar, a vespa
zunindo em cima do capim.
O corpo todo intencionado
arrepio na coluna ondulando
pra dentro do casulo
só consegui me acalmar o suficiente
escrevendo 30 páginas
na primeira pessoa do plural
que se enrola de muitos modos
e se atém a tantos
nós.


via: facebook da autora

domingo, 21 de abril de 2019

Poema dum Funcionário Cansado, de António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só



via: Arthur Moura Campos

[não quero ter você], de Rupi Kaur

não quero ter você
para preencher minhas partes
vazias
quero ser plena sozinha
quero ser tão completa
que poderia iluminar a cidade
e só aí
quero ter você
porque nós dois juntos
botamos fogo em tudo

In: “Outros jeitos de usar a boca”, p. 59



via Kamilly

[se humanos fossem insetos], de Janaina Tokitaka

se humanos fossem insetos
não tenho dúvidas que seríamos
o besouro rola-esterco
arrastando eternamente
uma meticulosa esfera
moldada a partir de restos


do livro Pequenas armaduras
via Maria Luiza Rodrigues Souza

trecho de Donne,"O Êxtase", tradução de Augusto de Campos

“But as all several souls contain
Mixture of things, they know not what,
Love, these mixed souls, doth mix again,
And makes both one, each this and that”.

“Mas assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas”.


in: Donne, Augusto de Campos e a tradução criativa
de Ana Helena Souza

segunda-feira, 4 de março de 2019

Rainer Maria Rilke (A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristovão Rilke)

Cavalgar, cavalgar, cavalgar, pela noite, pelo dia, pela noite.
Cavalgar, cavalgar, cavalgar.
E a coragem tornou-se tão lassa e a saudade tão grande. Não há mais montanhas, apenas uma árvore. Nada ousa levantar-se. Cabanas estrangeiras agacham-se sequiosas à beira de fontes lamacentas. Em nenhum lugar uma torre. E sempre o mesmo aspecto. É demais, ter dois olhos.