domingo, 18 de julho de 2021

CARTA A UMA MENINA QUE QUERIA SER POETA, de Ana Hatherly

 

A Matilde Rosa Araújo


Quando quiseres fazer um poema

não procures imitar ninguém 

nenhum autor

cujas obras tenhas conhecido

ou mesmo

qualquer cantiga popular

cujo autor desconheças.


Não.

Não faças isso.


Quando quiseres fazer um poema

a única coisa de que precisas

é sentir essa vontade e depois

- só depois - 

decidires-te.


Um poema pode ter muitas formas:

pode ser feito com palavras

muito bonitas

ou muito engraçadas

muito bem escritas e alinhadas

numa linda folha de papel

mas também pode ser rabiscado

ou com figuras.


Pode ser a preto e branco

ou a cores 

pode ser a tinta

a lápis

a esferográfica

a ponta de feltro

sobre papel

plástico

lousa

pedras

sei lá

até pode ser de areia

de pano

de folhas

pode ser só feito com a voz 

falado

cantado

murmurado

dito

só dentro da cabeça da gente 

ou então representado no palco 

com gestos 

caretas várias

aos saltos

cambalhotas

ou imovelmente.


Um poema pode ser tudo isso

pode ter essas formas todas 

porque a poesia está 

onde a soubermos encontrar

ou colocar.


A poesia é uma coisa que está 

ou tem de estar 

dentro de nós

e que nós 

por isso

podemos projectar em tudo.


A poesia não é só uma arte 

é um princípio

quer dizer 

uma lei da nossa sensibilidade. 

O que a poesia exige de nós

é só uma coisa: 

liberdade

porque a liberdade

é a lei mais importante da criação

a lei mais importante da felicidade.


A poesia é um acto livre

tem de ser um acto livre. 

Mas também é um jogo

um conjunto de regras

que a nós próprios impomos 

para com elas praticarmos 

um acto que nos torna felizes.


Todas as formas de arte

nascem dessa liberdade

dessa iniciativa 

que nos leva a criar 

coisas

casas

livros

palavras.


A poesia é para sermos felizes

e comunicarmos 

essa felicidade. 

Quando a poesia 

trata de assuntos tristes

está a queixar-se 

da falta de alegria 

dos momentos infelizes do mundo

que não deixam criar 

realidades belas

novas

generosas.


No entanto

quando um poeta cria 

um poema 

um objecto

uma coisa qualquer 

nesse momento exacto 

não pensa em nada disso: 

vive simplesmente um impulso

a que ele se entrega 

e depois entrega ao mundo.


Por isso

se tudo o que te apetece

é simplesmente 

deitares-te no chão 

e olhar o céu 

podes crer

também isso é poesia

e basta.


Ana Hatherly, ITINERÁRIOS, ed. Quasi



Via: opoemaensinaacair

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