terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O Abutre, duas traduções, de Kafka.

Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

- É que estou sem defesa – respondi – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor – Basta um tiro e pronto!

- Acha que sim? – disse eu – Quer o senhor disparar o tiro?

- Certamente – disse o senhor – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?

- Não sei lhe dizer. – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

- De qualquer modo, vá, peço-lhe.

- Bem – disse o senhor – Vou o mais depressa possivel.

O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

(fonte: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/08/11/o-abutre-franz-kafka/)


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Um abutre golpeava-me os pés com o bico. Já tinha rasgado e despedaçado as minhas botas e meias e agora ia debicando os meus pés. Investia contra eles repentinamente, depois voava em círculos, irrequieto, à minha volta, para depois regressar e continuar o trabalho. Passou então por mim um cavalheiro, observou a cena durante uns instantes, depois perguntou-me porque razão eu suportava aqueles truques. "Não consigo defender-me", respondi. "Quando o abutre veio e me começou a atacar, claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas estes animais são muito fortes, ele estava prestes a investir contra a minha cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora estão quase feitos em pedaços". "Imagine-se uma pessoa deixar-se torturar assim!", disse o senhor. "Basta um tiro e é o fim do abutre." "A sério?", perguntei eu. "E o senhor faria isso?" "Com prazer, replicou o cavalheiro. "Tenho apenas de ir a casa buscar a minha arma. Seria capaz de esperar mais meia hora?" "Não tenho a certeza se consigo, disse eu, e levantei-me por um momento, hirto de dor. Acrescentei então: "Em todo o caso tente, por favor." "Muito bem, disse o cavalheiro." Vou o mais depressa que puder." Durante esta conversa o abutre tinha estado calmamente à escuta, passeando o olhar entre mim e o cavalheiro. Apercebi-me agora que ele compreendera tudo. Levantou então voo, afastou-se bastante para ganhar ímpeto e depois, como um lançador de dardo, mergulhou o bico na minha boca, pela garganta abaixo, penetrando fundo no meu corpo. Caindo para trás, fiquei aliviado quando senti que a ave se afogava irrecuperavelmente no meu sangue, sangue que enchia todas as profundezas e inundava todas as terras.

(fonte: http://queridobestiario.blogspot.com/2009/06/o-abutre-fanz-kafka.html)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Passeio, de Alfred Lichtenstein, 2

Tu, esses quartos
Fixos e as áridas ruas
E o rubro sol das casas,
A infame repugnância de todos
Os livros há muito já folheados –
Não os agüento mais.

Vem, precisamos sair da cidade
Para muito longe.
Vamos deitar-nos em
Suave gramado.
Ameaçadores e tão abandonados,
Contra o absurdamente grande,
Mortalmente azul, brilhante céu,
Levantaremos mãos choradas
E encantados,
Descarnados, apáticos olhos.

(tradução de Claudia Cavalcanti)
(fonte: http://albumzutico.blogspot.com/2008_01_29_archive.html)

O Passeio, de Alfred Lichtenstein, 1

Tu, não aguento mais
esses quartos imóveis e as áridas ruas,
e o rubro sol das casas,
a infame repugnância de todos
os livros há muito folheados.

Vem, precisamos sair da cidade
para bem longe.
Vamos deitar-nos na
grama suave.
Vamos, ameaçados e sem ajuda,
contra o absurdamente grande,
mortalmente azul, brilhante céu,
levantar olhos encovados e apáticos,
desencantadas e desgastadas mãos.

(tentei descobrir o tradutor, não consegui)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Rainer Maria Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta, 12 de agosto de 1904, trechos

"Quanto mais tranqüilos, pacientes e receptivos formos quando estamos tristes, tanto mais profundo e mais firme o modo como o novo entra em nós, tanto mais fazemos por merecê-lo, tanto mais ele se torna o nosso destino."

"Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita. Quem fosse retirado de seu quarto, quase sem preparação ou transição, e posto nas alturas de uma grande montanha, necessariamente sentiria algo semelhante: uma insegurança, um abandono ao inominável quase o aniquilariam. Ele pensaria estar caindo ou sendo arrastado pelos ares ou destroçado em mil pedaços. Seu cérebro precisaria inventar uma mentira enorme para captar e esclarecer a situação de seus sentidos."


"No fundo é esta a única coragem que se exige em nós: sermos corajosos diante do que é estranho, mais maravilhoso e mais inexplicável entre tudo com que nos deparamos."

"Contudo, é muito mais humana do que essa segurança aquela incerteza, cheia de perigos, que leva os prisioneiros dos contos de Poe a tatearem as formas de seus cárceres aterrorizantes e a não serem alheios aos horrores indizíveis de sua permanência ali."

"E no entanto nós não somos prisioneiros. Não há armadilhas e emboscadas armadas em torno de nós, nada que nos devesse angustiar ou perturbar. Estamos lançados na vida como no elemento ao qual correspondemos melhor, além disso nos tornamos, por meio de uma adaptação de milhares de anos, tão semelhantes a essa vida que, por um mimetismo afortunado, se nos mantivermos quietos, quase não nos diferenciaremos daquilo que nos cerca. Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los."

"Como poderíamos esquecer aqueles antigos mitos que se encontram nos primórdios de todos os povos, os mitos sobre os dragões que, no último momento, transformam-se em princesas; talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas, que só esperam nos ver um dia belos e corajosos."

"É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora."

"Em geral, é preciso ter muito cuidado com os nomes; muitas vezes é o nome de um crime que destrói uma vida, e não a própria ação, pessoal e inominada, que talvez fosse uma necessidade muito determinada dessa vida e pudesse ser acolhida sem esforço por ela."



quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ordem n°2 ao Exército das Artes, de Maiakóvski

Ordem n°2 ao Exército das Artes


A vós
- barítonos redondos -
cuja voz
desde Adão até à nossa era
nos atros buracos chamados teatros
estronda o ribombo líricos das árias.

A vós
- pintores -
cavalos cevados,
rumino-relinchante galardão eslavo,
no fundo dos estúdios, cediços como dragos,
pintando anatomias e quadros de flores.

A vós
rugas na testa entre fólios de mística
- micro-futuristas
  -imagistas,
  -acmeístas,
emaranhados no aranhol das rimas.

A vós -
descabelando cabelos bem penteados,
barganhando scarpins por solados,
vates do Proletcult,
remendões do fraque velho de Púchkin.

A vós -
bailadores, sopradores de flauta,
amolecendo às claras
ou em furtivas faltas,
e figurando o futuro nos termos
de um imenso quinhão acadêmico.
A vós todos
eu -
que acabei com berloques e dou duro na Rosta -
gênio ou não gênio, tenho
a dizer: basta!
Abaixo com isso,
antes que vos abata o coice dos fuzis.


Basta!
Abaixo,
cuspi
no rimário,
nas árias,
nos róses açafates
e mais minincolias
do arsenal das artes.
Quem se interessa
por ninharias
como estas: "Ah pobre coitado!
Quanto amou sem ter sido amado..."?
Artífices,
é o que tempo exige
e não sermonistas de juba.
Ouvi
o gemido das locomotivas,
que lufa das frinchas, do chão:
"Dai-nos, companheiros,
carvão do Don!
Ao depósito, vamos,
serralheiros,
mecânicos!"

À nascente dos rios,
deitados com furos nas costas,
- "Petróleo de Baku!" - pedem navios
uivando das docas.

Perdidos em disputas monótonas,
buscamos o sentido secreto,
quando um clamor sacode os objetos:
"Dai-nos novas formas!"

Não há mais tolos boquiabertos
esperando a palavra do "mestre".
Dai-nos, camaradas, uma arte nova
- nova -
que arranque a República da escória.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Jogo da Amarelinha, Julio Cortázar, capítulo 7

Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. 

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Homem-bomba, de Nuno Ramos

Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos (oitavas, quartas, terças), com o único eco, bum, da minha solidão - vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Jaguadarte, de Lewis Carrol por Augusto de Campos



Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.


“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”

Êle arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvora Tamtam êle afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Êle se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

Jabberwocky, de Lewis Carrol

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

“Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
The frumious Bandersnatch!”

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought—
So rested he by the Tumtum tree,
And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.

“And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!”
He chortled in his joy.

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

domingo, 31 de outubro de 2010

Passagem das Horas, Álvaro de Campos

Trago dentro do meu coração,  
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,  
Todos os lugares onde estive,  
Todos os portos a que cheguei,  
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,  
Ou de tombadilhos, sonhando,  
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,  
O coral das Maldivas em passagem cálida,  
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente  
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...  
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade  
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol  
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...  
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...  
Tempestades em torno ao Guardaful...  
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...  
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...  
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...  
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,  
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir  
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,  
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,  
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,  
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,  
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,  
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,  
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,  
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,  
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.  
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei  
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,  
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque  
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,  
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,  
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,  
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,  
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair  
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,  
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,  
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,  
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,  
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,  
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...  
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,  
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...  
Que há de ser de mim?  Que há de ser de mim?  
  
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,  
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.  
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.  
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...  
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...  
Só estou bem quando ouço música, e nem então.  
Jardins do século dezoito antes de 89,  
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?  
  
 Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,  
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.  
  
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.  
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.  
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.  
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.  
Minha quinta na província,  
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.  
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,  
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,  
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...  
  
 Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.  
Só humanitariamente é que se pode viver.  
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,  
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.  
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!  
  
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,  
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.  
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,  
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.  
Amei e odiei como toda gente,  
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,  
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.  
  
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.  
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,  
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.  
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,  
Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,  
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,  
A direção constantemente abandonada do nosso destino,  
A nossa incerteza pagã sem alegria,  
A nossa fraqueza cristã sem fé,  
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,  
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,  
A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...  
  
Não sei sentir, não sei ser humano, conviver  
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.  
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,  
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,  
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,  
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,  
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.  
  
Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...  
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,  
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,  
Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,  
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,  
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,  
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,  
E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...  
'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,  
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,  
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,  
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...  
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,  
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,  
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...  
  
Sentir tudo de todas as maneiras,  
Viver tudo de todos os lados,  
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,  
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos  
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.  
  
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,  
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,  
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,  
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,  
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.  
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.  
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,  
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,  
Porque ser inferior é diferente de ser superior,  
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.  
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,  
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,  
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,  
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.  
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,  
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.  
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,  
(No mesmo abraço comovido)  
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,  
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,  
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,  
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,  
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —  
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.  
  
Beijo na boca todas as prostitutas,  
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,  
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos  
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.  
Tudo é a razão de ser da minha vida.  
  
Cometi todos os crimes,  
Vivi dentro de todos os crimes  
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,  
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,  
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).  
  
Multipliquei-me, para me sentir,  
Para me sentir, precisei sentir tudo,  
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,  
Despi-me, entreguei-rne,  
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.  
  
Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,  
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.  
  
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,  
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,  
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares  
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.  
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,  
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).  
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!  
  
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,  
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)  
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,  
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,  
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,  
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,  
Os seus half-holidays inesperados...  
Mary, eu sou infeliz...  
Freddie, eu sou infeliz...  
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,  
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,  
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —  
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,  
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,  
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!  
  
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,  
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...  
Meu coração tribunal, meu coração mercado,  
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,  
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,  
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,  
Estalagem, calabouço número qualquer cousa  
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)  
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,  
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,  
Meu coração postigo,  
Meu coração encomenda,  
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,  
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,  
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.  
  
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,  
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,  
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,  
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,  
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.  
  
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,  
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,  
Com as cabeças femininas coiffées de lin  
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...  
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,  
E a fita entalada com o fechar da gaveta,  
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,  
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,  
Definitivamente para todo o resto do Universo,  
E que os carros me passem por cima.)

Fui para a cama com todos os sentimentos,  
Fui souteneur de todas ás emoções,  
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,  
Troquei olhares com todos os motivos de agir,  
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,  
Febre imensa das horas!  
Angústia da forja das emoções!  
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,  
A cadela a uivar de noite,  
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,  
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,  
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,  
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,  
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,  
Orgia intelectual de sentir a vida!  
  
Obter tudo por suficiência divina —  
As vésperas, os consentimentos, os avisos,  
As cousas belas da vida —  
O talento, a virtude, a impunidade,  
A tendência para acompanhar os outros a casa,  
A situação de passageiro,  
A conveniência em embarcar já para ter lugar,  
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,  
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,  
Rir como um copo entornado,  
Absolutamente doido só por sentir,  
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,  
Ferido na boca por morder coisas,  
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,  
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Sentir tudo de todas as maneiras,  
Ter todas as opiniões,  
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,  
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,  
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,  
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia  
Que a dor real das crianças em quem batem  
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —  
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)  
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,  
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,  
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque  
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.  
Eu, enfim, literalmente eu,  
E eu metaforicamente também,  
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso  
As leis irrepreensíveis da Vida,  
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,  
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,  
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo  
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...  
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,  
Sem personalidade com valor declarado,  
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,  
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,  
E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria  
Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz  
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livroda rapariga que encontrou no terraço,  
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,  
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,  
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,  
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.  
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina  
Coada através das árvores do jardim público,  
Eu, o que os espera a todos em casa,  
Eu, o que eles encontram na rua,  
Eu, o que eles não sabem de si próprios,  
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,  
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,  
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,  
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,  
A cicatriz do sargento mal encarado,  
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,  
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,  
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...  
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,  
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,  
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,  
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,  
O sacana do José que prometeu vir e não veio  
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...  
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...  
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,  
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...  
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,  
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,  
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de ttido isto,  
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...  
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,  
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,  
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,  
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,  
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...  
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,  
O baú das iniciais gastas,  
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -  
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo  
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.  
A Brígida prima da minha tia,  
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,  
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...  
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!  
Caem as folhas secas no chão irregularmente,  
Mas o fato é que sempre é outono no outono,  
E o inverno vem depois fatalmente,  
há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,  
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,  
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão  
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,  
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.  
Não me subordino senão por atavisnio,  
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades  
Acessíveis à imaginação  
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,  
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,  
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,  
Vou ao lado dela sem ela saber.  
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,  
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.  
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,  
Não há modo de eu não estar em toda a parte.  
O meu privilégio é tudo  
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.  
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,  
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,  
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,  
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta  
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,  
Viajei pela mão dela sempre,  
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,  
E todos os dias têm essa janela por diante,  
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,  
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,  
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,  
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido  
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.  
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,  
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,  
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,  
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...  
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo  
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,  
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,  
He-la-ho-ho ... Helahoho ...

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...  
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe  
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,  
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,  
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,  
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha  
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...  
Ho ----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!  
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!  
Ave, salve, viva a grande máquina universo!  
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!  
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,  
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,  
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,  
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,  
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,  
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,  
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,  
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,  
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.  
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:  
Infinito...  
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,  
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,  
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar  
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,  
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,  
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente  
Rola ...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,  
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,  
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros  
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,  
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,  
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,  
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,  
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

Ah, não estar parado nem a andar,  
Não estar deitado nem de pé,  
Nem acordado nem a dormir,  
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,  
Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,  
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,  
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...  
  
Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,  
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,  
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

Hup-la por cima das árvores,  hup-la por baixo dos tanques,  
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,  
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,  
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,  
Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,  
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,  
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,  
Clarim claro da manhã ao fundo  
Do semicírculo frio do horizonte,  
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas  
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,  
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade  ...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,  
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,  
Tosse seca, nova do que sai de casa,  
Leve arrepio matutino na alegria de viver,  
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,  
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,  
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora  
Inevitavelmente vital,  
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,  
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas  
Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,  
...................................................................... e caminha tudo  
  
Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras  
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge  
  
Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —  
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,  
Do rodopio parado da minha retentiva seca,  
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.  
  
Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,  
Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos  
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua  
Passeio lojistas "perdão" rua  
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim  
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá  
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,  
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua  
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua  
  
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim  
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua  
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés  
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços  
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,  
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.  
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.  
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.  
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!  
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!  
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te  
Por todos os precipícios abaixo  
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objetos projéteis!  
À moi, todos os objetos direções!  
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!  
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!  
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!  
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!  
  
Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,  
Velocidade entra por todas as idéias dentro,  
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,  
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,  
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,  
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado  
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,  
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,  
Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.  
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!  
...............................................................  
...............................................................

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,  
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.  
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.  
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?  
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,  
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,  
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,  
Calcar, calcar, calcar até não sentir.  
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,  
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,  
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,  
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,  
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.  
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...