Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
- É que estou sem defesa – respondi – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor – Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? – disse eu – Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente – disse o senhor – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. – respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem – disse o senhor – Vou o mais depressa possivel.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.
(fonte: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/08/11/o-abutre-franz-kafka/)
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Um abutre golpeava-me os pés com o bico. Já tinha rasgado e despedaçado as minhas botas e meias e agora ia debicando os meus pés. Investia contra eles repentinamente, depois voava em círculos, irrequieto, à minha volta, para depois regressar e continuar o trabalho. Passou então por mim um cavalheiro, observou a cena durante uns instantes, depois perguntou-me porque razão eu suportava aqueles truques. "Não consigo defender-me", respondi. "Quando o abutre veio e me começou a atacar, claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas estes animais são muito fortes, ele estava prestes a investir contra a minha cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora estão quase feitos em pedaços". "Imagine-se uma pessoa deixar-se torturar assim!", disse o senhor. "Basta um tiro e é o fim do abutre." "A sério?", perguntei eu. "E o senhor faria isso?" "Com prazer, replicou o cavalheiro. "Tenho apenas de ir a casa buscar a minha arma. Seria capaz de esperar mais meia hora?" "Não tenho a certeza se consigo, disse eu, e levantei-me por um momento, hirto de dor. Acrescentei então: "Em todo o caso tente, por favor." "Muito bem, disse o cavalheiro." Vou o mais depressa que puder." Durante esta conversa o abutre tinha estado calmamente à escuta, passeando o olhar entre mim e o cavalheiro. Apercebi-me agora que ele compreendera tudo. Levantou então voo, afastou-se bastante para ganhar ímpeto e depois, como um lançador de dardo, mergulhou o bico na minha boca, pela garganta abaixo, penetrando fundo no meu corpo. Caindo para trás, fiquei aliviado quando senti que a ave se afogava irrecuperavelmente no meu sangue, sangue que enchia todas as profundezas e inundava todas as terras.
(fonte: http://queridobestiario.blogspot.com/2009/06/o-abutre-fanz-kafka.html)
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
O Passeio, de Alfred Lichtenstein, 2
Tu, esses quartos
Fixos e as áridas ruas
E o rubro sol das casas,
A infame repugnância de todos
Os livros há muito já folheados –
Não os agüento mais.
Vem, precisamos sair da cidade
Para muito longe.
Vamos deitar-nos em
Suave gramado.
Ameaçadores e tão abandonados,
Contra o absurdamente grande,
Mortalmente azul, brilhante céu,
Levantaremos mãos choradas
E encantados,
Descarnados, apáticos olhos.
(tradução de Claudia Cavalcanti)
(fonte: http://albumzutico.blogspot.com/2008_01_29_archive.html)
Fixos e as áridas ruas
E o rubro sol das casas,
A infame repugnância de todos
Os livros há muito já folheados –
Não os agüento mais.
Vem, precisamos sair da cidade
Para muito longe.
Vamos deitar-nos em
Suave gramado.
Ameaçadores e tão abandonados,
Contra o absurdamente grande,
Mortalmente azul, brilhante céu,
Levantaremos mãos choradas
E encantados,
Descarnados, apáticos olhos.
(tradução de Claudia Cavalcanti)
(fonte: http://albumzutico.blogspot.com/2008_01_29_archive.html)
O Passeio, de Alfred Lichtenstein, 1
Tu, não aguento mais
esses quartos imóveis e as áridas ruas,
e o rubro sol das casas,
a infame repugnância de todos
os livros há muito folheados.
Vem, precisamos sair da cidade
para bem longe.
Vamos deitar-nos na
grama suave.
Vamos, ameaçados e sem ajuda,
contra o absurdamente grande,
mortalmente azul, brilhante céu,
levantar olhos encovados e apáticos,
desencantadas e desgastadas mãos.
(tentei descobrir o tradutor, não consegui)
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Rainer Maria Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta, 12 de agosto de 1904, trechos
"Quanto mais tranqüilos, pacientes e receptivos formos quando estamos tristes, tanto mais profundo e mais firme o modo como o novo entra em nós, tanto mais fazemos por merecê-lo, tanto mais ele se torna o nosso destino."
"Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita. Quem fosse retirado de seu quarto, quase sem preparação ou transição, e posto nas alturas de uma grande montanha, necessariamente sentiria algo semelhante: uma insegurança, um abandono ao inominável quase o aniquilariam. Ele pensaria estar caindo ou sendo arrastado pelos ares ou destroçado em mil pedaços. Seu cérebro precisaria inventar uma mentira enorme para captar e esclarecer a situação de seus sentidos."
"Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita. Quem fosse retirado de seu quarto, quase sem preparação ou transição, e posto nas alturas de uma grande montanha, necessariamente sentiria algo semelhante: uma insegurança, um abandono ao inominável quase o aniquilariam. Ele pensaria estar caindo ou sendo arrastado pelos ares ou destroçado em mil pedaços. Seu cérebro precisaria inventar uma mentira enorme para captar e esclarecer a situação de seus sentidos."
"No fundo é esta a única coragem que se exige em nós: sermos corajosos diante do que é estranho, mais maravilhoso e mais inexplicável entre tudo com que nos deparamos."
"Contudo, é muito mais humana do que essa segurança aquela incerteza, cheia de perigos, que leva os prisioneiros dos contos de Poe a tatearem as formas de seus cárceres aterrorizantes e a não serem alheios aos horrores indizíveis de sua permanência ali."
"E no entanto nós não somos prisioneiros. Não há armadilhas e emboscadas armadas em torno de nós, nada que nos devesse angustiar ou perturbar. Estamos lançados na vida como no elemento ao qual correspondemos melhor, além disso nos tornamos, por meio de uma adaptação de milhares de anos, tão semelhantes a essa vida que, por um mimetismo afortunado, se nos mantivermos quietos, quase não nos diferenciaremos daquilo que nos cerca. Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los."
"Como poderíamos esquecer aqueles antigos mitos que se encontram nos primórdios de todos os povos, os mitos sobre os dragões que, no último momento, transformam-se em princesas; talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas, que só esperam nos ver um dia belos e corajosos."
"É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora."
"Em geral, é preciso ter muito cuidado com os nomes; muitas vezes é o nome de um crime que destrói uma vida, e não a própria ação, pessoal e inominada, que talvez fosse uma necessidade muito determinada dessa vida e pudesse ser acolhida sem esforço por ela."
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