sábado, 30 de maio de 2020

Não aquele que diz, de Mary Oliver, tradução de Jorge Sousa Braga

Não aquele que diz “Vou ser
cauteloso e inteligente em matéria de amor”
Não aquele que diz ”Vou escolher lentamente”
mas aqueles que não escolheram
e foram escolhidos
por algo invisível e poderoso e incontrolável
e belo e possivelmente mesmo
inadequado—
aqueles que sabem do que falo
quando falo de amor


via opoemaensinaacair

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Manifesto, de Nicanor Parra, Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet

Senhoras e senhores
Esta é nossa última palavra
- Nossa primeira e última palavra -
Os poetas baixaram do Olimpo.

Para os mais velhos
A poesia foi um objeto de luxo
Mas para nós
É um artigo de primeira necessidade:
Não podemos viver sem poesia.

Diferentemente dos mais velhos
- E digo isso com todo respeito -
Nós sustentamos
Que o poeta não é um alquimista
O poeta é um homem qualquer
Um pedreiro que constrói seu muro:
Um construtor de portas e janelas.

Nós conversamos
Na linguagem do dia a dia
Não acreditamos em signos cabalísticos.

E tem mais:
O poeta está aí
Para que a árvore não cresça torta.

Esta é a nossa mensagem.
Nós denunciamos o poeta demiurgo
O poeta Barata
O poeta Rato de Biblioteca.

Todos esses senhores
- E digo isso com muito respeito -
Devem ser processados e julgados
Por construir castelos no ar
Por desperdiçar espaço e tempo
Escrevendo sonetos à lua
Por agrupar palavras ao acaso
À última moda de Paris.
Para nós, não:
O pensamento não nasce na boca
Nasce no coração do coração.

Nós repudiamos
A poesia de óculos escuros
A poesia de capa e espada
A poesia de chapéu de aba larga.
Por outro lado, propiciamos
A poesia de olhos abertos
A poesia de peito aberto
A poesia de cabeça descoberta.

Não acreditamos em ninfas nem tritões.
A poesia tem que ser isto:
Uma garota rodeada de espigas
Ou não ser absolutamente nada.

Agora sim, no plano político
Eles, nossos avós imediatos,
Nossos bons avós imediatos!
Se refrataram e se dispersaram
Ao passar pelo prisma de cristal.
Uns poucos se tornaram comunistas.
Bom, não sei se o foram de fato.
Suponhamos que foram comunistas
O que sei é o seguinte:
Não foram poetas populares
Foram veneráveis poetas burgueses.

Há que dizer as coisas como são:
Apenas um ou outro
Soube chegar ao coração do povo.
Cada vez que puderam
Se declararam em palavras e ações
Contra a poesia engajada
Contra a poesia do presente
Contra a poesia proletária.

Aceitemos que foram comunistas
Mas a poesia foi um desastre
Surrealismo de segunda mão
Decadentismo de terceira mão
Tábuas velhas devolvidas pelo mar.
Poesia adjetiva
Poesia nasal e gutural
Poesia arbitrária
Poesia copiada dos livros
Poesia baseada
Na revolução da palavra
Quando deveria se fundar
Na revolução das ideias.
Poesia de círculo vicioso
Para meia dúzia de eleitos:
“Liberdade absoluta de expressão”.

Hoje nos persignamos perguntando
Para que escreveriam essas coisas -
Para assustar o pequeno-burguês?
Tempo perdido miseravelmente!
O pequeno-burguês não reage
Senão quando se trata do estômago.

Como vão assustá-lo com poesias!

A situação é esta:
Enquanto eles defendiam
Uma poesia do crepúsculo
Uma poesia da noite
Nós propugnamos
A poesia do amanhecer.
Esta é a nossa mensagem
Os resplendores da poesia
Devem chegar a todos igualmente
A poesia é bastante para todos.

É isso, companheiros
Nós condenamos
- E isto, sim, digo com respeito -
A poesia de pequeno deus
A poesia de vaca sagrada
A poesia de touro furioso.

Contra a poesia das nuvens
Nós opomos
A poesia da terra firme
- Cabeça fria, coração quente
Somos terrafirmistas convictos -
Contra a poesia dos cafés
A poesia da natureza
Contra a poesia de salão
A poesia da praça pública
A poesia de protesto social.

Os poetas baixaram do Olimpo.

[Prometi a mim mesmo], excerto de Ron Padgett

Prometi a mim mesmo
explorar o meu vazio
o espaço que ocupo
e não ocuparei
mas continuo à espera

à espera



via opoemaensinaacair

Poema de Amor, de Jorge Sousa Braga

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
             te coubesse no dedo





via opoemaensinaacair

[não é de dor], trecho de Maria Velho da Costa

Não é de dor que se enlouquece,
é de não querer lembrar a dor.



via  opoemaensinaacair

Arte Poética, de Filipa Leal

I. ARTE POÉTICA

Os temas
somos nós à procura da nossa solução.




via opoemaensinaacair

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Nota de rodapé para Uivo, trecho, Ginsberg [santo 17 vezez]

Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo!

constituíntimo, de pio vargas


contra a solidão
não há lei
ainda que
perante ela
sejamos todos iguais.

o códio civil
não prevê pena
para o crime
de estar vazio:

o ambíguo
que trazemos
por dentro
não tem regra
nem regulamento.



Via aymê:
Pio Vargas mergulhando no abismo do vazio...

[um par?] trecho de Ana Martins Marques

Duas pessoas dançando
a mesma música
em dias diferentes
formam um par?


Via opoemaensinaacair

trecho de António Reis

Onde vamos livres

Onde vamos presos

correr como rios
durar
como pedras

e lançar raízes



Via opoemaensinaacair

É como nos incêndios, de José Carlos Barros

aprendemos sempre t
arde



Via opoemaensinaacair

trecho de Filipa Leal (Arte poética)

I. ARTE POÉTICA

Os temas
somos nós à procura da nossa solução.



Via opoemaensinaacair

trecho de Maiakóvski

(...)
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá pra o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Vladimir Maiakóvski



Via Vinícius Vargas

domingo, 24 de maio de 2020

IV Discurso do Capibaribe, João Cabral de Melo Neto

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

(...)

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


Publicado no livro O cão sem plumas (1950).

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.114-116. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileirar

Via Lyanna

Site
https://www.escritas.org/pt/t/11962/iv-discurso-do-capibaribe

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Ritual de sacrifício, de Heloísa Gusmão

Bendita seja a faca no fruto do ventre
Da mãe do filho podre, do filho da puta;
Bendita seja a santa ira, porque dentre
Todos os deuses, perdoa a fúria da luta.

Nas tripas da maldade Ela se enfia e fere
A ferro e fogo e espalha a merda que, simbólica,
Alude ao fel que há na mente diabólica
Do desgoverno mal que no bem se interfere.

Por isso bebo sangue e peço que ma envie.
Que a faca eu desembanhe num só golpe certo;
Que a ira irrecusável me tome, inebrie.

Que o bode expiatório tenha o corpo aberto
Num ritual de remissão que desagrave
A Peste que nos mata (e sua morte nos salve).

_______
Pintura: Judith com a cabeça de Holofernes, Vincenzo Catena (1525)



via Kamilly no face

segunda-feira, 18 de maio de 2020

poesias de Beatriz Nascimento

BEATRIZ NASCIMENTO
(Aracaju, 1942 — Rio de Janeiro, 1995)

Antes tudo acontecesse como antes aconteceu
Não vindo como algo novo
Seduzindo o que não estava atento
Antes tudo acontecesse como o aviso do sinal
Atenção! “Está prestes a se concretizar”
E não como serpente silenciosa
Em seu silvar
Antes tudo acontecesse quando te sentisses forte
Capaz de reagir, que pudesses sangrar
Antes tudo acontecesse como se fosse o previsto
Visto de trás ou de longe
Antes que te atingisse de frente
Antes tudo acontecesse como acontecem as histórias
De encontros e rompimentos, num mergulho sem demora
Antes tudo se passasse como passa o arco-íris
Num momento luz, noutro bruma e crepúsculo.

*

Quantos caminhos percorro
A quantos choros recorro
Ao fim de cada cansaço

O que é aquela cama
Que daqui observo?
Vazia e desfeita como o acontecido?

Quantas perguntas me faço
Se certo ou errado, ou pura desatenção?
Se procedente ou contrário
Sem chegar à decisão
De abandonar de uma vez
Sonho há muito acumulado

O que é aquela cama no escuro?
Manchada de tantas culpas
Que caminham como víboras
E sugam aos poucos meu corpo?
Quem saltará sobre ela
Para ir em meu socorro?

Quantos caminhos vivi
Em quantas veredas sofri
A ânsia de ser feliz?
Como me encontro agora
Errantes como sempre foram
As sendas que escolhi.

*

À POTÊNCIA Z

Sendas abertas à força pesada
Movimento oscilante do conhecido
Irresoluto e precipitante
Como fundo falso.

No espelho véus justapostos
Ocultam o olhar como teias metálicas
Tornando o ser difuso.
Separando definitivamente o exterior do interior
Entrechocam-se e percutem fantasias antigas
Que não se miram como a um só pertencente.
E eis que surge na arena
Dançarino flamejante de intenções
Descabido como algo que desceu em terreno ocupado
Misterioso como dádiva encantada
De longínquas paragens.

Propiciador que ignorava capítulos de sua doutrina
Arrebatado qual luz da primeira hora.
Entre trevas e lusco-fusco
Ninguém saberia dizer sua “Eternia”.
De que matéria se constituía
A que missão se destinava.

Nas cores que esbanjava
A perplexidade das combinações
Sufocava os gritos de dor
Inibia os brados de alegria.
Chamejando como picantes chicotes
A volúpia luminosa impedia os sons.
Quem era aquele viajante de tantos confins?
Confinado em seus próprios gases?

*

ESPERA

Aquilo mesmo que busco
Como saída, me interrompe
Num tempo de esquecimento
Em suspenso
Suspense. Ânsia edificada no ar
Não tenho a oferecer ao outro
A não ser uma vida concluída.
A terminar. Um exílio forçado,
Não-voluntário.
Um susto, muitos riscos
Uma eterna ascensão
Um lugar não tombado
Nenhum traço de união
Só uma obra de arte
O espaço que ocupo
Completo, não despojado
Dos meus receios e temores
Dos meus ódios e amores
Do olhar dessemelhante
De qualquer ângulo em que estás.





via face, selecionadas por Ricardo Domeneck

Autora negra

domingo, 17 de maio de 2020

mar becker

hoje: em memória de todos aqueles que estamos perdendo - mas que não se vão jamais

---

os mortos continuam morrendo
entre nós

passam-se dias, e ainda se veem fios de cabelos na escova

passam-se meses, até anos
e o pedaço de papel que foi deixado na gaveta reaparece
e pela caligrafia encontramos o pulso
e pelo pulso, o sangue

.

os mortos continuam morrendo

vão indo aos poucos, enquanto olhamos suas fotografias, seus verões passados

e vez ou outra lembramos que podemos tocar seus rostos com a ponta dos dedos

eles não se turvarão
não desaparecerão como se fossem reflexo na superfície da água

(hão de amarelar um dia, e então falaremos deles como sóis se pondo)

.

para que tenhamos onde descansar os olhos, por isso os mortos morrem assim, tão ternos

para que tenhamos altares
para que tenhamos lugares
em torno de onde
dizer alguma

palavra

---

mar becker
em: primeira versão do texto de abertura do caderno dos mortos, 2017/20
imagem: domenico a. coiro


via camile

domingo, 10 de maio de 2020

trecho de A noite dos Assassinos, de José Triana

"A Sala não é a sala, a sala é a cozinha
O Quarto não é o Quarto, o quarto é o banheiro."



via Robson no FB

Razões adicionais para os poetas mentirem, por Hans Magnus Enzensberger



Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
“Sou um desesperado”.
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
“Estou morrendo”
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto, é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.


post de Aline no face em 10/05/2020

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TO SOME I HAVE TALKED WITH BY THE FIRE, de w.b. yeats



WHILE I wrought out these fitful Danaan rhymes,
My heart would brim with dreams about the times
When we bent down above the fading coals
And talked of the dark folk who live in souls
Of passionate men, like bats in the dead trees;
And of the wayward twilight companies
Who sigh with mingled sorrow and content,
Because their blossoming dreams have never bent
Under the fruit of evil and of good:
And of the embattled flaming multitude
Who rise, wing above wing, flame above flame,
And, like a storm, cry the Ineffable Name,
And with the clashing of their sword-blades make
A rapturous music, till the morning break
And the white hush end all but the loud beat
Of their long wings, the flash of their white feet.