terça-feira, 27 de abril de 2021

Amar, de Drummond

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?


Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o amar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?


Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.


Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Como aquel que en soñar gusto recibe, de Juan Boscan [Oh Sombra!]

Como aquel que en soñar gusto recibe,

su gusto procediendo de locura,

así el imaginar con su figura

vanamente su gozo en mí concibe.


Otro bien en mí, triste, no se escribe,

si no es aquel que en mi pensar procura;

de cuanto ha sido hecho en mi ventura

lo sólo imaginado es lo que vive.


Teme mi corazón de ir adelante,

viendo estar su dolor puesto en celada;

y así revuelve atrás en un instante


a contemplar su gloria ya pasada.

¡Oh sombra de remedio inconstante,

ser en mí lo mejor lo que no es nada!



via: versão musicada de Electrelane

fonte: http://amediavoz.com/boscan.htm

Quero escrever o borrão vermelho de sangue, de Clarice Lispectos

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

com as gotas e coágulos pingando

de dentro para dentro.

Quero escrever amarelo-ouro

com raios de translucidez.

Que não me entendam

pouco-se-me-dá.

Nada tenho a perder.

Jogo tudo na violência

que sempre me povoou,

o grito áspero e agudo e prolongado,

o grito que eu,

por falso respeito humano,

não dei.


Mas aqui vai o meu berro

me rasgando as profundas entranhas

de onde brota o estertor ambicionado.

Quero abarcar o mundo

com o terremoto causado pelo grito.

O clímax de minha vida será a morte.


Quero escrever noções

sem o uso abusivo da palavra.

Só me resta ficar nua:

nada tenho mais a perder.



enviada por Nath na ocasião de "fazer de palavra"

via https://www.escritas.org/pt/t/5445/quero-escrever-o-borrao-vermelho-de-sangue

quarta-feira, 14 de abril de 2021

JÁ NÃO, de Idea Vilariño, trad. por Vasco Gato

 JÁ NÃO 


Já não será 

já não 

não viveremos juntos 

não criarei o teu filho

não coserei a tua roupa 

não te terei à noite 

não te beijarei ao partir 

nunca saberás quem fui 

porque é que outros me amaram. 

Nunca chegarei a saber 

porquê nem como 

nem se era a sério 

o que disseste que era 

nem quem foste 

nem o que fui para ti

nem como teria sido 

vivermos juntos 

amarmo-nos 

esperarmos um pelo outro 

estarmos. 

Já não sou mais do que eu

para sempre e tu 

já 

não serás para mim 

mais do que tu. Já não estás 

num dia futuro 

não saberei onde vives 

com quem 

nem se te lembras. 

Nunca me abraçarás

como naquela noite

nunca. 

Não voltarei a tocar-te.

Não te verei morrer. 


Idea Vilariño, LACRAU, traduções e versões de poesia por Vasco Gato, edição Língua Morta




Via opoemaensinaacair

domingo, 11 de abril de 2021

Fear and the monkey, Burroughs, traduzido por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça: "o medo e o macaco"

 POETA: WILLIAM S. BURROUGHS

William Seward Burroughs II (St. Louis, 5 de fevereiro de 1914 — Lawrence, 2 de agosto de 1997) foi um escritor, pintor e crítico social nascido nos Estados Unidos da América.


POEMA – FEAR AND THE MONKEY

Turgid itch and the perfume of death

On a whispering south wind

A smell of abyss and of nothingness

Dark Angel of the wanderers howls through the loft

With sick smelling sleep

Morning dream of a lost monkey

Born and muffled under old whimsies

With rose leaves in closed jars

Fear and the monkey

Sour taste of green fruit in the dawn

The air milky and spiced with the trade winds

White flesh was showing

His jeans were so old

Leg shadows by the sea

Morning light

On the sky light of a little shop

On the odor of cheap wine in the sailors’ quarter

On the fountain sobbing in the police courtyards

On the statue of moldy stone

On the little boy whistling to stray dogs.

Wanderers cling to their fading home

A lost train whistle wan and muffled

In the loft night taste of water

Morning light on milky flesh

Turgid itch ghost hand

Sad as the death of monkeys

Thy father a falling star

Crystal bone into thin air

Night sky

Dispersal and emptiness.

— August 1978.


(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)

MEDO E O MACACO

Coceira irritante e o perfume da morte

No sussurrante vento sul

Cheiro de abismo e nada

O Anjo Vil dos vagabundos uiva pelo apartamento

Como um sono cheirando a doença

Sonho matutino de um macaco perdido

Nascido e sufocado por velhas fantasias

Com pétalas de rosa em frascos fechados

Medo e o macaco

Gosto amargo de fruta verde ao amanhecer

O ar lácteo e picante da brisa marinha

Carne branca denuncia

Teus jeans tão desbotados

Perna sob sombras do mar

Luz da manhã

No néon celeste de um armazém

No cheiro do vinho barato no bairro dos marujos

Na fonte soluçante do patío da polícia

Na estátua de pedra embolorada

No molequinho assobiando para vira-latas.

Vagabundos agarram suas casa imaginárias

Um trem perdido apita vago e abafado

No apartamento noite gosto d’água

Luz da manhã em carne láctea

Coceira irritante mão fantasma

Triste como a morte dos macacos

Teu pai uma estrela cadente

Osso de cristal no ar fino

Céu noturno

Dispersão e vazio.

(Em Vozes & VIsões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje, Editora Iluminuras, 1994)



dica de Alda Alexandre

achado em:

https://boni.wordpress.com/2017/02/05/098/

sábado, 10 de abril de 2021

Frágil é a minha marcha, de Marina Tsvetáieva, tradução de Igor Werneck

 [1 de Novembro de 1918]


Frágil é a minha marcha

- puro sinal da consciência

Frágil é a minha marcha,

e sonante a minha toada


Deus a mim fez só

Em meio a vasto mundo

Mulher não és, mas pássaro,

dessarte – voa e canta.


link: https://revistamododeusar.blogspot.com/2017/07/marina-tsvetaeva-em-traducoes-de-igor.html