sábado, 27 de março de 2021

O Poema Ensina a Cair, de Luiza Jorge Neto

O poema ensina a cair

sobre vários solos

desde perder o chão repentino sob os pés

como se perde os sentidos numa

queda de amor,ao encontro

do cabo onde a terra abate e

a fecunda ausência excede

até à queda vinda

da lenta volúpia de cair,

quando a face antige o solo

numa curva delgada subtil

uma vénia a ninguém de especial

ou especialmente a nós uma homenagem

póstuma.



via: https://www.escritas.org/pt/t/3300/o-poema-ensina-a-cair 

quinta-feira, 25 de março de 2021

A Fábrica do Poema, de Waly Salomão

 (In memoriam Donna Lina Bo Bardi)

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.

sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

(de “O mel do melhor”, Rocco, 2001)



Via

revistamacondo


https://revistamacondo.wordpress.com/2013/07/05/poema-fabrica-do-poema-waly-salomao/


terça-feira, 16 de março de 2021

Morte no Avião, de Carlos Drummond de Andrade

 Acordo para a morte.

Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco. Para que
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.


Almoço. Para quê? Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro de velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.


O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, prununcio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.
Declino a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.


Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfale o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.


Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.


Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.


Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.


A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.


Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão parecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
dos sopros robustos prestes a desfazer-se.


E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morres se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.


Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.


Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.




recebido de um participante da oficina de criação poética

DINOSAURIA, WE, de Charles Bukowski

nascido assim

nisso


como o giz de faces sorridentes

como a Sra. Morte às gargalhadas

como as paisagens políticas dissolvidas

como o peixe oleoso cuspido

fora de sua oleosa vítima.


nós nascemos assim

nisso


nos hospitais que são tão caros

que são baratos para morrer

com advogados que cobram muito

é mais barato pleitear a culpa

num país onde as cadeias estão cheias

e os hospícios estão fechados

num lugar onde as massas elevam a heróis

os idiotas ricos


nascido nisso

andando e vivendo nisso

morrendo por causa disso

castrado

corrompido

deserdado

por causa disso


os dedos se estenderam para um deus irresponsável

os dedos alcançaram a garrafa

a pílula

o poder


nós nascemos nessa triste linha da morte

nascemos em um governo em débito há 60 anos

incapaz de se interessar em pagar esse débito

e os bancos vão se queimar

o dinheiro será inútil

estará aberto e impunível o assassinato nas ruas

serão armas e multidões passageiras

a terra será inútil

a comida terá um retorno mínimo

o poder nuclear será tomado por muitos

as explosões continuarão balançando o mundo

os ricos e escolhidos olharão

das plataformas do espaço

o inferno de Dante será feito para olhar

como um campo de jogos de crianças

o sol não será visto e será sempre noite

as árvores morrerão

toda a vegetação morrerá

homens radioativos comerão

a carne dos homens radioativos

o mar será envenenado

os lagos e rios desaparecerão

a chuva será ouro novo

os corpos apodrecidos do homem

e dos animais vão feder

os últimos sobreviventes serão alcançados

por doenças novas e medonhas

e as plataformas do espaço

serão destruídas pelo seu atrito

com materiais do lado de fora

efeito natural da deterioração

e lá estará um bonito silêncio

nunca ouvido


Nascido fora disso

o sol estará à espera

do próximo capítulo.


Referência:

BUKOWSKI, Charles. Dinosauria, We. The Last Night of the Earth Poems. 1992.

via: http://www.chacomletras.com.br/2017/02/a-visao-apocaliptica-de-bukowski/



recebido de uma participante da oficina de criação poética

sábado, 13 de março de 2021

Destruidor de Lares, de Ocean Vuong, tradução de Rogério Gallindo

 & nós dançávamos assim: vestidos brancos das mães

que transbordavam nossos pés, o fim de agosto

colorindo as nossas mãos de um rubro escuro. & nos amávamos assim:
com vodka & uma tarde no ático, os teus dedos

entre os meus cabelos — os meus cabelos em fogo. Cobríamos
o ouvido e o chilique do teu pai se transformava

em pulsações. Quando os nossos lábios se tocavam o dia se encerrava
num caixão. No museu do coração

há duas pessoas sem cabeça construindo uma casa em chamas.
A espingarda esteve sempre lá sobre a

lareira. Sempre uma outra hora para matar — só para implorar
a um deus que nos devolva. Senão o ático, o carro. Senão

o carro, o sonho. Senão o menino, as suas roupas. Se não vive,
desligue o telefone. Porque o ano é uma distância

que viajamos em círculos. O que quer dizer: nós dançávamos
assim: sozinhos em corpos que dormem. O que quer dizer:

nós nos amávamos assim: uma faca na língua se transformando
em uma língua.



via: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/tres-poemas-de-ocean-vuong/

Limiar, de Ocean Vuong, tradução de Rogério Galindo

 No corpo, onde tudo tem seu preço,

              eu era um mendigo. Ajoelhado,

olhava, pela fechadura, não
              o homem no banho, mas a chuva

a atravessar seu corpo: cordas de guitarra a
                estalar sobre ombros em forma de globo.

Ele cantava, e é por isso
             que eu lembro. Sua voz

me preenchia até a medula
             como um esqueleto. Até mesmo meu nome

se ajoelhava dentro de mim, pedindo
                para ser poupado.

Ele cantava. É tudo que lembro.
                Pois no corpo, onde tudo tem seu preço,

eu estava vivo. Eu não sabia
                que havia motivo melhor.

Que certa manhã meu pai ia parar
                — potro negro em tempestade —

& tentar escutar minha respiração contida
                atrás da porta. Eu não sabia que o custo

de entrar numa canção — era perder
                o caminho de volta.

Por isso entrei. Por isso perdi.
                Perdi tudo com meus olhos

bem abertos.



via: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/tres-poemas-de-ocean-vuong/

sexta-feira, 12 de março de 2021

Sete Poemas do Pássaro, de Orides Fontela

 I

O pássaro é definitivo

por isso não o procuremos:

ele nos elegerá.


II

Se for esta a hora do pássaro

abre-te e saberás

o instante eterno.


III

Nunca será mais a mesma

nossa atmosfera

pois sustentamos o vôo

que nos sustenta.


IV

O pássaro é lúcido

e nos retalha.

Sangramos. Nunca haverá

cicatrização possível

para este rumo.


V

Este pássaro é reto;

arquiteta o real e é o real mesmo.


VI

Nunca saberemos

tanta pureza:

pássaro devorando-nos

enquanto o cantamos.


VII

Na luz do vôo profundo

existiremos neste pássaro:

ele nos vive.




via Alda Alexandre

fonte: https://oescriba.org/2018/07/17/sete-poemas-do-passaro-orides-fontela-umpoemapordia/

quinta-feira, 11 de março de 2021

Era manhã de Setembro, de Carlos Drummond de Andrade

 Era manhã de setembro

e

 ela me beijava o membro 


Aviões e nuvens passavam

coros negros rebramiam

ela me beijava o membro


O meu tempo de menino

o meu tempo ainda futuro

cruzados floriam junto


Ela me beijava o membro


Um passarinho cantava,

bem dentro da árvore, dentro

da terra, de mim, da morte


Morte e primavera em rama

disputavam-se a água clara

água que dobrava a sede


Ela me beijando o membro


Tudo o que eu tivera sido

quanto me fora defeso

já não formava sentido


Somente rosa crispada

o talo ardente, uma flama

aquele êxtase na grama


Ela a me beijar o membro


Dos beijos era o mais casto

na pureza despojada

que é própria das coisas dadas


Nem era preito de escrava

enrodilhada na sombra

mas presente de rainha


tornando-se coisa minha

circulando-me no sangue

e doce e lento e erradio


como beijara uma santa

no mais divino transporte

e num solene arrepio


beijava beijava o membro


Pensando nos outros homens

eu tinha pena de todos

aprisionados no mundo


Meu império se estendia

por toda a praia deserta

e a cada sentido alerta


Ela me beijava o membro


O capítulo do ser

o mistério de existir

o desencontro de amar


eram tudo ondas caladas

morrendo num cais longínquo

e uma cidade se erguia


radiante de pedrarias

e de ódios apaziguados

e o espasmo vinha na brisa


para consigo furtar-me

se antes não me desfolhava

como um cabelo se alisa


e me tornava disperso

todo em circulos concêntricos

na fumaça do universo


Beijava o membro


beijava

e se morria beijando

a renascer em setembro



via ayrton b.

Os Amigos Que Morrem, de Fiama Hasse Pais Brandao

 

Os amigos que morrem são arbóreos,

plantados e memoráveis como freixos.

Um freixo, que vejo entre árvores

como a aura, o tronco novo

sulcado de rasgões, a raiz curta

comparável à memória viva enterrada.

Têm uma única forma até à morte, próximos do Sol,

que torna as outras árvores mais ténues que os isolados freixos.


via: https://www.escritas.org/pt/t/3147/os-amigos-que-morrem indicação de poeta de ayrton b.

El laberinto de la soledad, de Eucanaã Ferraz

 Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.

Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se limitava a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatros, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das luas e lobisomens,
de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem somente para chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassarar parede,
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas discussões das metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável; um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamante isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodka, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando aparecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.


O Divisor, de Edwin Morgan

 Continuo pensando em você - o que é ridículo. 

Estes anos entre nós como um mar.

E a dignidade que veio com o tempo 

impediria meu lápis sobre o papel.

O som estava ligado; você pediu pelos Stones; 

conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.

As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem. 

Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.

Não há razão para isto, nenhuma.

Você diria que não posso ser o que não sou, 

mesmo que eu não possa ser o que sou.

Onde isso nos leva? O que podemos fazer?

O silêncio após Jagger foi como uma capa 

que eu teria jogado sobre você - havia apenas 

o vento, e o relógio batia enquanto você bebia, 

agarrando a caneca verde entre as mãos.

Não olhe para cima assim de repente!

Como é duro não olhar você.

Chegamos ao ponto de não falar 

e não se preocupar, e aquilo 

foi quase feliz. Então, mais tarde,

quando você deitou sobre o cotovelo no carpete 

não senti nada além de uma punhalada 

de dor me dizendo o que era, 

e não posso dizer para você, nem uma palavra.


[In Edwin Morgan - Poetas do Mundo, seleção, tradução e introdução de Virna Teixeira, Brasília, Ed. UNB, 2006, pp. 29-31]. 


via: http://www.banquetepoetico.com.br/2013/11/edwin-morgan.html?m=1

domingo, 7 de março de 2021

trecho de Utopia de um homem que está cansado, de Jorge Luís Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr.

 — Trata-se de uma citação? — perguntei.

— Com certeza. Só nos restam citações. A língua é um sistema de citações.

In : Utopia de um homem que está cansado - Jorge Luís Borges

Cantares, de Antonio Machado

Tudo passa e tudo fica

porém o nosso é passar,

passar fazendo caminhos

caminhos sobre o mar


Nunca persegui a glória

nem deixar na memória

dos homens minha canção

eu amo os mundos sutis

leves e gentis,

como bolhas de sabão


Gosto de ver-los pintar-se

de sol e grená, voar

abaixo o céu azul, tremer

subitamente e quebrar-se…


Nunca persegui a glória


Caminhante, são tuas pegadas

o caminho e nada mais;

caminhante, não há caminho,

se faz caminho ao andar


Ao andar se faz caminho

e ao voltar a vista atrás

se vê a senda que nunca

se há de voltar a pisar


Caminhante não há caminho

senão há marcas no mar…


Faz algum tempo neste lugar

onde hoje os bosques se vestem de espinhos

se ouviu a voz de um poeta gritar

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar”…


Golpe a golpe, verso a verso…


Morreu o poeta longe do lar

cobre-lhe o pó de um país vizinho.

Ao afastar-se lhe viram chorar

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar…”


Golpe a golpe, verso a verso…


Quando o pintassilgo não pode cantar.

Quando o poeta é um peregrino.

Quando de nada nos serve rezar.

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar…”


Golpe a golpe, verso a verso.


(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

quinta-feira, 4 de março de 2021

Cântico Negro, de José Régio

 Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!




via: Arthur M. C.

via: https://www.culturagenial.com/poema-cantico-negro-de-jose-regio/

terça-feira, 2 de março de 2021

Psicologia da Composição, de João Cabral de Melo Neto

 1.


Saio de meu poema

como quem lava as mãos.


Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.


Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;


talvez, como a camisa

vazia, que despi.


2.


Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.


Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.


Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;


como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.


3.


Neste papel

pode teu sal

virar cinza;


pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.


(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)


Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas


flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.


(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)


4.


O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro; rompendo

seu branco fio, seu cimento

mudo e fresco.


(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)


5.


Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.


Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio de mel

(do dia que abriu

também como flor)


que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido

contra o açúcar do podre.


6.


Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;


não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;


mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola,


aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.


7.

É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.


São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.


É mineral

a linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.


É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza


da palavra escrita.


8.


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas.


(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

caiu, fruto!


Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:


então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;


onde foi palavra

(potros ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio.



Paisagem pelo Telefone, de João Cabral de Mello Neto

PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,


sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,


a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,


Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,


sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,


que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol que as veste

e tampouco as ilumina,


mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.


Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesse envolvida,


fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,


e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria


que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,


sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.



Publicado no livro Quaderna (1960).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.225-227.

(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)


via: https://www.escritas.org/pt/t/11506/paisagem-pelo-telefone

indicação de: ayrton b.