terça-feira, 2 de março de 2021

Paisagem pelo Telefone, de João Cabral de Mello Neto

PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,


sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,


a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,


Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,


sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,


que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol que as veste

e tampouco as ilumina,


mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.


Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesse envolvida,


fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,


e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria


que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,


sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.



Publicado no livro Quaderna (1960).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.225-227.

(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)


via: https://www.escritas.org/pt/t/11506/paisagem-pelo-telefone

indicação de: ayrton b.

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