terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Conversa com Friedrich Nietzsche, de Adam Zagajewski, tradução de Marco Bruno

 CONVERSA COM FRIEDRICH NIETZSCHE


Excelentíssimo Senhor Friedrich,

tenho a impressão de estar a ver agora o senhor,

no terraço do sanatório, ao amanhecer,

com o nevoeiro a cair e o canto a rebentar

nas gargantas dos pássaros.


Não muito alto, a cabeça como um projéctil,

o senhor está a escrever um novo livro

e uma estranha energia flui de si:

parece que vejo os seus pensamentos como se fossem

grandes exércitos em parada


O senhor sabe que morreu a morena Anne Frank

e os seus colegas de escola e amigos, rapazes e raparigas,

os coetâneos, e as amigas dos seus amigos

e os seus primos.


Quero perguntar-lhe o que é que são as palavras, o que é

a claridade, porque é que as palavras continuam a queimar

passados cem anos, embora a terra

seja tão pesada.


É óbvio que não existe nexo entre a iluminação

e a obscura dor da crueldade.

Existem pelo menos dois reinos,

mas é possível que haja ainda mais.


No caso, porém, de não haver Deus e de nenhuma força

estabelecer conexões entre elementos antagónicos,

o que é que são então as palavras e qual é a origem

da sua luz interior?


E qual a origem da alegria? E qual o destino do nada?

Qual a morada do perdão?

Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar do dia

enquanto os grandes continuam a crescer?



Via: opoemaensinaacair

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Meteoro, de Roberto Piva

 Eu direi as palavras mais terríveis esta noite

enquanto os ponteiros se dissolvem

contra o meu poder

contra o meu amor

no sobressalto da minha mente

meus olhos dançam

no alto da Lapa os mosquitos me sufocam

que me importa saber se as mulheres são

férteis se Deus caiu no mar se

Kierkegaard pede socorro numa montanha

da Dinamarca?


os telefones gritam

isoladas criaturas caem no nada

os órgãos de carne falam morte

morte doce carnaval de rua do

fim do mundo

eu não quero elegias mas sim os lírios

de ferro dos recintos

há uma epopéia nas roupas penduradas contra

o céu cinza

e os luminosos me fitam do espaço alucinado

quantos lindos garotos eu não vi sob esta luz?


eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido

narcóticos santos ó gato azul da minha mente

Oh Antonin Artaud

Oh Garcia Lorca

com seus olhos de aborto reduzidos

a retratos


almas

almas

como icebergs

como velas

como manequins mecânicos

e o clímax fraudulento dos sanduíches almoços

sorvetes controles ansiedades

eu preciso cortar os cabelos da minha alma

eu preciso tomar colheradas de

Morte Absoluta

eu não enxergo mais nada

meu crânio diz que estou embriagado

suplícios genuflexões neuroses

psicanalistas espetando meu pobre

esqueleto em férias


eu apertava uma árvore contra meu peito

como se fosse um anjo

meus amores começam crescer

passam cadillacs sem sangue os helicópteros

mugem

minha alma minha canção bolsos abertos

da minha mente

eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos


,

via Abigail no feice, nesse dia, em 2017

domingo, 29 de novembro de 2020

The Wandering Rats, ou Die Wanderratten, de Henrich Heine, translated by Cameron Shingleton

 The Wandering Rats


There are two kinds of rat:

The hungry and the fat.

The fat ones stay content at home,

The hungry ones though, they hungrily roam.


They roam for many a mile,

Relentlessly lacking in style,

Straight on along their miserable track,

No wind nor weather can hold them back.


They climb over mountain peaks,

They swim the murkiest lakes;

Many have broken their necks or drowned,

The living pass on without looking around.


Take a look at these louts

With their fearsome ugly snouts;

Heads shaven bare they're at physical peak -

Radical chic - ratty and sleek.


The radical rodent squad

Know nothing of Heaven or God.

Their whelps run unbaptised and free,

Their wives are common property.


The sensuous rats of the fleet

Want no more than to drink and to eat,

No thought while they gulp, slurp and chortle

That our souls were created immortal.


Such wild and savage rats

Have no fear of Hell or of cats;

They think though they haven't a cent to their name

To divide up the world so we all have the same.


The rats are a'roaming here too,

Coming to a suburb near you!

I hear their squeaks, straight on they press,

Their multitude is numberless.


Alas! By now its too late,

They're already at the gate!

The local council and the mayor

Are shaking their heads in brainless despair.


Good citizens ready to arm,

The church bells ring out in alarm.

In peril is something by which we set store,

Our property values, our whole rule of law


No tolling of bells, no pious old pleas,

No majestic parliamentary decrees,

No squadron of cannon, no hundred pounders

Will save your children, your statues of founders,


No help from the verbal poptarts

Of weary rhetorical arts.

You don't catch a rat with a logical trap

So spare me your fine-spun sophistical crap.


To the hungry inside of a rat in a group

Appeals only the logic of dumplings and soup,

Arguments smelling of pig on a spit

With a side-dish of porky political wit.


A taciturn cod stewed in butter for hours

Is what pleases the radical powers

Far better than any Mirabeau

Or all the orations since Cicero.

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Die Wanderratten


Es gibt zwei Sorten Ratten:

Die hungrigen und satten.

Die satten bleiben vergn ügt zu Haus,

Die hungrigen aber wandern aus.


Sie wandern viel tausend Meilen,

Ganz ohne Rasten und Weilen,

Gradaus in ihrem grimmigen Lauf,

Nicht Wind noch Wetter hält sie auf.



Sie klimmen wohl über die Hцhen,

Sie schwimmen wohl durch die Seen;

Gar manche ersäuft oder bricht das Genick,

Die lebenden lassen die Toten zurück.


Es haben diese Käuze

Gar fürchterliche Schnäuze;

Sie tragen die Köpfe geschoren egal,

Ganz radikal, ganz rattenkahl.


Die radikale Rotte

Weiß nichts von einem Gotte.

Sie lassen nicht taufen ihre Brut,

Die Weiber sind Gemeindegut.


Der sinnliche Rattenhaufen,

Er will nur fressen und saufen,

Er denkt nicht, während er säuft und frißt,

Daß unsre Seele unsterblich ist.


So eine wilde Ratze,

Die fürchtet nicht Hölle, nicht Katze;

Sie hat kein Gut, sie hat kein Geld

Und wünscht aufs neue zu teilen die Welt.


Die Wanderratten, o wehe!

Sie sind schon in der Nähe.

Sie rücken heran, ich höre schon

Ihr Pfeifen - die Zahl ist Legion


O wehe! wir sind verloren,

Sie sind schon vor den Toren!

Der Bürgermeister und Senat,

Sie schütteln die Köpfe, und keiner weiß Rat.


Die Bürgerschaft greift zu den Waffen,

Die Glocken läuten die Pfaffen.

Gefährdet ist das Palladium

Des sittlichen Staats, das Eigentum.


Nicht Glockengeläute, nicht Pfaffengebete,

Nicht hochwohlweise Senatsdekrete,

Auch nicht Kanonen, viel Hundertpfünder,

Sie helfen Euch heute, Ihr lieben Kinder!


Heut helfen Euch nicht die Wortgespinste

Der abgelebten Redekünste.

Man fängt nicht Ratten mit Syllogismen,

Sie springen über die feinsten Sophismen.


Im hungrigen Magen Eingang finden

Nur Suppenlogik mit Knödelgründen,

Nur Argumente von Rinderbraten,

Begleitet mit Göttinger Wurst-Zitaten.


Ein schweigender Stockfisch, in Butter gesotten,

Behaget den radikalen Rotten

Viel besser als ein Mirabeau

Und alle Redner seit Cicero.


POSTED BY CAMERON SHINGLETON 


source: http://cshingleton.blogspot.com/2010/02/translations-2-heine.html


citado no original em alemão em observações sobre o amor de transferência, de Freud

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Te Assombra o Raiar do Dia, de Ebba Hentze, trad por Luciano Dutra

 TE ASSOMBRA O RAIAR DO DIA


Te assombra o raiar do dia

e o vento

dias grises

em que todos os repastos são monocromáticos

e as tramazeiras se debatem contra as empenas

e a única embarcação no fiorde

é esse barco a remo

e o velho

que puxa a rede de pescar búzios

primeiro uma poita

depois a outra


(traduzido do feroês por Luciano Dutra)


[TÚ RÆÐIST GRÁLÝSIÐ]


Tú ræðist grálýsið

og vindin

gráar daga

tá øll verðin er einlitt

og roynitrøyni pínast móti skjøldrinum

og einasta farið á fjørðinum

er tristurin

og gamli maðurin

sum hálar kúvingalínuna inn

eitt høvd fyri

annað eftir


(Ebba Hentze)

sábado, 21 de novembro de 2020

No Second Troy, de Yeats, por Pedro Mohallem

 NENHUMA TROIA MAIS

(William Butler Yeats, trad. Pedro Mohallem)


Como culpá-la por encher meus dias

De angústia, ou por haver homens incultos

Incitado a violentas revelias,

E vielas contra ruas, em tumultos

A que bastassem o ímpeto e a coragem?

Como abrandar a mente que a nobreza

Fez simples como a chama, e o corpo à imagem

De um arco sempre teso, uma beleza

Estranha a tempos como o nosso, um ser

De altivo, austero e solitário ar?

Sendo quem é, que pôde ela fazer?

Havia Troias mais para incendiar?


______


NO SECOND TROY


Why should I blame her that she filled my days

With misery, or that she would of late

Have taught to ignorant men most violent ways,

Or hurled the little streets upon the great,

Had they but courage equal to desire?

What could have made her peaceful with a mind

That nobleness made simple as a fire,

With beauty like a tightened bow, a kind

That is not natural in an age like this,

Being high and solitary and most stern?

Why, what could she have done, being what she is?

Was there another Troy for her to burn?



Via facebook do autor

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

ESFINGE, de Orides Fontela

 ESFINGE


Não há perguntas. Selvagem

o silêncio cresce, difícil.


— Orides Fontela (1940–1998)




Via fb Ricardo Domeneck

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O dilema de Telêmaco + Ítaca, de Louise Glück, tradução de Pedro Gonzaga

 O dilema de Telêmaco  

Nunca consigo decidir
o que escrever
nas lápides de meus pais. Sei
o que ele quer: ele quer
amado, o que por certo
vai direto ao ponto, particularmente
se contarmos todas
as mulheres. Mas
isso deixa minha mãe
a descoberto. Ela me diz
que isto não lhe importa
para nada; ela prefere
ser representada por
suas próprias conquistas. Parece
pura falta de tato lembrar aos dois
que alguém não
honra aos mortos perpetuando
suas vaidades, suas
projeções sobre si mesmos.
Meu próprio gosto dita
precisão sem
tagarelice; eles são
meus pais, consequentemente
eu os vejo juntos,
às vezes inclinado a
marido e mulher, outras a
forças opostas.

,,,

Ítaca

O ser amado não
precisa viver. O ser amado
vive na cabeça. O tear
é para os pretendentes, suspenso
como uma harpa de brancos filamentos.

Ele era duas pessoas.
Era corpo e voz, o fácil
magnetismo de um homem vivo, e então
o sonho revelado ou a imagem
formada pela mulher manejando o tear,
ali sentada num salão cheio
de homens de mentes literais.

Se te causa pena
o mar enganado que tentou
levá-lo para sempre
e devolveu apenas o primeiro,
o verdadeiro marido, deverias
sentir pena desses homens: eles não sabem
para o que estão olhando;
eles não sabem que quando alguém ama dessa maneira
o manto se torna um vestido de casamento.

,,,,

Ítaca foi camile que me mostrou, mas sem saber quem traduziu, busquei mais e cheguei aqui:

https://veja.abril.com.br/cultura/poetisa-louise-gluck-conquista-o-nobel-de-literatura-em-2020

"A íris selvagem", de Louise Glück, tradução de Camila Assad

 "No final do meu sofrimento

havia uma saída.

Me ouça bem: aquilo que você chama de morte
eu me recordo.

Mais acima, ruídos, ramos de um pinheiro se movendo.
Então, nada. O sol fraco
cintilando sobre a superfície seca.


É terrível sobreviver
como consciência,
enterrada na terra escura.

Então tudo acabou: aquilo que você teme,
se tornando
uma alma e incapaz
de falar, encerrando abruptamente, a terra dura
se inclinando um pouco. E o que pensei serem
pássaros lançando-se em arbustos baixos.

Você que não se lembra
da passagem de outro mundo
eu te digo poderia repetir: aquilo que
retorna do esquecimento retorna
para encontrar uma voz:

do centro de minha vida veio
uma vasta fonte, azul profundo
sombras na água do mar azul. "



Via camile via https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/10/08/leia-poemas-traduzidos-de-louise-gluck-vencedora-do-premio-nobel-de-literatura-2020.ghtml




Erva-de-bruxa, de Louise Glück, tradução de Margarida Vale de Gato

 ERVA-DE-BRUXA


Uma coisa 

malvinda aparece no mundo

a clamar desordem, desordem –

 

Se me odeias assim tanto

não te incomodes a dar-me

nome: ou precisas

de mais um insulto 

na tua língua, outra

forma de culpabilizar

uma tribo por tudo –

 

como sabemos ambos,

quando se adora

um deus, é só preciso

Um inimigo –

 

Eu não sou o inimigo.

Apenas um esquema para tapar

o que vês a acontecer

aqui nesta cama de terra,

um pequeno paradigma

de falhar. Uma das tuas flores preciosas

morre aqui quase todos os dias

e tu não vais descansar até

atacares a causa, ou seja

tudo o que restar, tudo

o que por acaso vinga

mais do que a tua paixão pessoal —

 

Não era seu destino

durar para sempre no mundo real.

Mas para quê admiti-lo, se podes continuar 

a fazer o que sempre fazes,

a carpir e a culpabilizar,

as duas coisas sempre juntas.


Eu não preciso dos teus elogios

para sobreviver. Já aqui estava antes

de cá chegares, antes de alguma vez

teres plantado um jardim.

E aqui estarei quando só o sol e a lua

restarem, e o mar, e o campo aberto.

 

Eu formarei o campo.



via camille via opoemaensinaacair

O Encontro, de Louise Glück, USA (1943), tradução de Jorge Sousa Braga

Chegaste à beira da cama

e sentaste-te a olhar para mim.

E então beijaste-me – e eu senti

como se fosse cera quente na minha testa.

Queria que ela deixasse uma marca:

foi assim que soube que te amava.

Porque queria ser queimada, carimbada,

ficar com alguma coisa no fim -

Passei o vestido por cima da cabeça;

um rubor vermelho cobriu o meu rosto e os meus ombros.

Seguirá o seu curso, o curso do fogo,

colocando uma moeda fria na testa, entre os olhos.

Deitas-te a meu lado; a tua mão move-se sobre o meu rosto

como se também o sentisses -

apercebeste-te então, do quanto te desejava.

Saberemos sempre isso, tu e eu.

A prova será o meu corpo.



Via camile via opoemaensinaacair

A PAPOILA VERMELHA, de Louise Glück, tradução de Ricardo Marques

A melhor coisa

é não ter

cabeça. Sentimentos:

oh, esses tenho, pois eles

governam-me. Tenho

um senhor no céu

a que chamo sol, e abro-me

para ele, mostrando-lhe

o fogo do meu próprio coração, um fogo

como o da sua presença.

Que glória poderia ser essa

senão um coração? Oh, irmãos e irmãs,

terão sido como eu, há séculos,

antes de serem humanos? Ter-se-ão

deixado abrir uma vez, para 

nunca mais abrir? Porque de facto

neste instante falo

tal como vós. Falo

porque estou destruída.


Via camile via opoemaensinaacair

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Brasil, do dicionário

 Brasil


''adjetivo de dois gêneros


1.

relativo a brasa.''

[a poesia é para comer], de Natália Correia

 [Natália Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923]


Senhores jurados sou um

poeta um multipétalo uivo um defeito e ando com

uma camisa de vento ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis de

armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim Sou em código o azul

de todos (curtido couro de cicatrizes) uma

avaria cantante na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade o vosso enfarte

serei não há cidade sem o parque do sono que

vos roubei Senhores professores que puseste

a prémio minha rara edição de raptar-me em

crianças que salvo do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes

sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis Senhores

heróis até aos dentes puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos umas estrofes mais

além Senhores três quatro cinco e sete que

medo vos pôs na ordem ? que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem ? Senhores

juízes que não molhais a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro sem que ele cante

minha defesa Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever ó

subalimentados do sonho ! a poesia é para comer.



Via opoemaensinaacair

Metaphors on Vision, de Stan Brakhage

 “Imagine um olho não governado por leis de perspectiva criadas por homens, um olho não influenciado por lógica de composição, um olho que não responde ao nome de tudo mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção. Quantas cores há num campo gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente do ‘Verde’? Quantos arcos-íris a luz pode criar para um olho desprovido de tutela? Imagine um mundo vivo povoado de objetos incompreensíveis e cintilando ao longo de uma gama infinita de movimentos e de inúmeras gradações de cor. Imagine um mundo ‘anterior ao conhecimento, antes de a palavra ser.’”


via Deusimar

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Sobre a Transitoriedade, de Freud (1916/1915)


Retirado do vol XIV das Obras Completas – Ed. Imago.


 Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

 
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
 
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
 
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
 
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
 
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
 
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
 
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
 
via mari c.

ALERTA, de Oswald de Andrade

Lá vem o lança-chamas

Pega a garrafa de gasolina

Atira

Eles querem matar todo amor

Corromper o pólo

Estancar a sede que eu tenho doutro ser

Vem de flanco, de lado

Por cima, por trás

Atira

Atira

Resiste

Defende

De pé

De pé

De pé

O futuro será de toda humanidade

terça-feira, 8 de setembro de 2020

carnário, de Dante Felgueiras

carnário

                  carnário
vida toda                     in medias res
               não só o começo
a missa:
messe de errança
    
                    proscritos
os episódios sujos
os limpos                 imundos
de Oeste embebidos
          sorvidos nos Letes
                                     
                             fatos-fetos
         fogos-fátuos
    evola-se o brejo
                          amniótico

lembra quando
               nós? lembra o quanto
                                     você? lembra que eu

nonada
         palavras antigas
       fariam da madrugada
                            alguma              filosofia          

                              mas Apolo Queimou
          a largada.                       Colheu-me O
                                                                       Dia



segunda-feira, 24 de agosto de 2020

EU DIGO SIM ATÉ DIZER NÃO, de Ricardo Domeneck

 Ricardo Domeneck, in  'Carta aos anfíbios' (2005)


EU DIGO SIM ATÉ DIZER NÃO


as circunvoluções

             e caprichos

        da atenção:

erguer a cabeça

e perder o sono


            sopro

                    vento

             em que

                  uma primeira esfera

          de ar impele

                        outra ao movimento


          ou em alto-mar

temendo menos a ausência

                  de resgate na superfície

que a povoação alheia

              e por isso informe, abaixo

n’água, invisível, mas parte

integrante das estruturas

do dia real


    só a lucidez abre caminho

                  para o imaginário


                            mas a carne insiste

                  no contínuo


onde as pedras são comestíveis

           e exige-se a fome;

                           durante a transfiguração

             em que anjos e bandejas

        circulam seu jardim

                                é fácil salmodiar

providências e entregas; mas

         é com o linho enfaixando toda a 

                    pele e a pedra

       separando esta caverna

da saúde do ar

            que se espera um Lázaro!

            Lázaro! e um segundo

         antes da asfixia

crer ainda

       que seja este o meu 

               nome, seja ESTE o MEU

                             nome


                    se cada folha parece

           percutir o sol hoje

e não se debruça do estame

                                              para o vazio 


                                  o mundo 

                    é tão simpático


           da montanha que fala resta

                  a mímica, da presença

o ventríloquo, de sua boca

o mapa que reconduz à porta


               mão em mão com passos lentos


    mas foi Isaque a carregar a lenha

                   nas costas, tomar o fogo e o cutelo

          na mão; e caminhou junto de seu pai


     todo sacrifício é aparente e inútil,


                              nenhuma

                árvore camufla 

                            suas frutas:

                    as expõe

            ao pássaro, ao

                            chão, ao suco

                     na garganta, à recusa

                        do estômago


            por 

                          tanto


         percorro os andaimes

                       de equilíbrio precário

                            :

                 ferro oxidável

                             saudoso

               de água


              e a alegria de quem, na

obrigação de abater um novilho,

       espera que seu corpo, de repente

                   forte, sobreviva ao sacrifício,


como uma garganta

enrijece-se rápida

para resistir à faca


– Ricardo Domeneck, in 'Carta aos anfíbios' (2005)

sábado, 6 de junho de 2020

Sala Provisória, de Inês Lourenço

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiada gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.



via opoemaensinaacair

Sá de Miranda Carneiro, de Alexandre O'Neill

comigo me desavim
                                          eu não sou eu nem sou o outro
sou posto em todo perigo
                                          sou qualquer coisa de intermédio
não posso viver comigo
                                          pilar da ponte de tédio
não posso viver sem mim
                                          que vai de mim para o Outro



via opoemaensinaacair

sábado, 30 de maio de 2020

Não aquele que diz, de Mary Oliver, tradução de Jorge Sousa Braga

Não aquele que diz “Vou ser
cauteloso e inteligente em matéria de amor”
Não aquele que diz ”Vou escolher lentamente”
mas aqueles que não escolheram
e foram escolhidos
por algo invisível e poderoso e incontrolável
e belo e possivelmente mesmo
inadequado—
aqueles que sabem do que falo
quando falo de amor


via opoemaensinaacair

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Manifesto, de Nicanor Parra, Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet

Senhoras e senhores
Esta é nossa última palavra
- Nossa primeira e última palavra -
Os poetas baixaram do Olimpo.

Para os mais velhos
A poesia foi um objeto de luxo
Mas para nós
É um artigo de primeira necessidade:
Não podemos viver sem poesia.

Diferentemente dos mais velhos
- E digo isso com todo respeito -
Nós sustentamos
Que o poeta não é um alquimista
O poeta é um homem qualquer
Um pedreiro que constrói seu muro:
Um construtor de portas e janelas.

Nós conversamos
Na linguagem do dia a dia
Não acreditamos em signos cabalísticos.

E tem mais:
O poeta está aí
Para que a árvore não cresça torta.

Esta é a nossa mensagem.
Nós denunciamos o poeta demiurgo
O poeta Barata
O poeta Rato de Biblioteca.

Todos esses senhores
- E digo isso com muito respeito -
Devem ser processados e julgados
Por construir castelos no ar
Por desperdiçar espaço e tempo
Escrevendo sonetos à lua
Por agrupar palavras ao acaso
À última moda de Paris.
Para nós, não:
O pensamento não nasce na boca
Nasce no coração do coração.

Nós repudiamos
A poesia de óculos escuros
A poesia de capa e espada
A poesia de chapéu de aba larga.
Por outro lado, propiciamos
A poesia de olhos abertos
A poesia de peito aberto
A poesia de cabeça descoberta.

Não acreditamos em ninfas nem tritões.
A poesia tem que ser isto:
Uma garota rodeada de espigas
Ou não ser absolutamente nada.

Agora sim, no plano político
Eles, nossos avós imediatos,
Nossos bons avós imediatos!
Se refrataram e se dispersaram
Ao passar pelo prisma de cristal.
Uns poucos se tornaram comunistas.
Bom, não sei se o foram de fato.
Suponhamos que foram comunistas
O que sei é o seguinte:
Não foram poetas populares
Foram veneráveis poetas burgueses.

Há que dizer as coisas como são:
Apenas um ou outro
Soube chegar ao coração do povo.
Cada vez que puderam
Se declararam em palavras e ações
Contra a poesia engajada
Contra a poesia do presente
Contra a poesia proletária.

Aceitemos que foram comunistas
Mas a poesia foi um desastre
Surrealismo de segunda mão
Decadentismo de terceira mão
Tábuas velhas devolvidas pelo mar.
Poesia adjetiva
Poesia nasal e gutural
Poesia arbitrária
Poesia copiada dos livros
Poesia baseada
Na revolução da palavra
Quando deveria se fundar
Na revolução das ideias.
Poesia de círculo vicioso
Para meia dúzia de eleitos:
“Liberdade absoluta de expressão”.

Hoje nos persignamos perguntando
Para que escreveriam essas coisas -
Para assustar o pequeno-burguês?
Tempo perdido miseravelmente!
O pequeno-burguês não reage
Senão quando se trata do estômago.

Como vão assustá-lo com poesias!

A situação é esta:
Enquanto eles defendiam
Uma poesia do crepúsculo
Uma poesia da noite
Nós propugnamos
A poesia do amanhecer.
Esta é a nossa mensagem
Os resplendores da poesia
Devem chegar a todos igualmente
A poesia é bastante para todos.

É isso, companheiros
Nós condenamos
- E isto, sim, digo com respeito -
A poesia de pequeno deus
A poesia de vaca sagrada
A poesia de touro furioso.

Contra a poesia das nuvens
Nós opomos
A poesia da terra firme
- Cabeça fria, coração quente
Somos terrafirmistas convictos -
Contra a poesia dos cafés
A poesia da natureza
Contra a poesia de salão
A poesia da praça pública
A poesia de protesto social.

Os poetas baixaram do Olimpo.

[Prometi a mim mesmo], excerto de Ron Padgett

Prometi a mim mesmo
explorar o meu vazio
o espaço que ocupo
e não ocuparei
mas continuo à espera

à espera



via opoemaensinaacair

Poema de Amor, de Jorge Sousa Braga

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
             te coubesse no dedo





via opoemaensinaacair

[não é de dor], trecho de Maria Velho da Costa

Não é de dor que se enlouquece,
é de não querer lembrar a dor.



via  opoemaensinaacair

Arte Poética, de Filipa Leal

I. ARTE POÉTICA

Os temas
somos nós à procura da nossa solução.




via opoemaensinaacair

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Nota de rodapé para Uivo, trecho, Ginsberg [santo 17 vezez]

Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo!

constituíntimo, de pio vargas


contra a solidão
não há lei
ainda que
perante ela
sejamos todos iguais.

o códio civil
não prevê pena
para o crime
de estar vazio:

o ambíguo
que trazemos
por dentro
não tem regra
nem regulamento.



Via aymê:
Pio Vargas mergulhando no abismo do vazio...

[um par?] trecho de Ana Martins Marques

Duas pessoas dançando
a mesma música
em dias diferentes
formam um par?


Via opoemaensinaacair

trecho de António Reis

Onde vamos livres

Onde vamos presos

correr como rios
durar
como pedras

e lançar raízes



Via opoemaensinaacair

É como nos incêndios, de José Carlos Barros

aprendemos sempre t
arde



Via opoemaensinaacair

trecho de Filipa Leal (Arte poética)

I. ARTE POÉTICA

Os temas
somos nós à procura da nossa solução.



Via opoemaensinaacair

trecho de Maiakóvski

(...)
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá pra o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Vladimir Maiakóvski



Via Vinícius Vargas

domingo, 24 de maio de 2020

IV Discurso do Capibaribe, João Cabral de Melo Neto

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

(...)

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


Publicado no livro O cão sem plumas (1950).

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.114-116. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileirar

Via Lyanna

Site
https://www.escritas.org/pt/t/11962/iv-discurso-do-capibaribe

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Ritual de sacrifício, de Heloísa Gusmão

Bendita seja a faca no fruto do ventre
Da mãe do filho podre, do filho da puta;
Bendita seja a santa ira, porque dentre
Todos os deuses, perdoa a fúria da luta.

Nas tripas da maldade Ela se enfia e fere
A ferro e fogo e espalha a merda que, simbólica,
Alude ao fel que há na mente diabólica
Do desgoverno mal que no bem se interfere.

Por isso bebo sangue e peço que ma envie.
Que a faca eu desembanhe num só golpe certo;
Que a ira irrecusável me tome, inebrie.

Que o bode expiatório tenha o corpo aberto
Num ritual de remissão que desagrave
A Peste que nos mata (e sua morte nos salve).

_______
Pintura: Judith com a cabeça de Holofernes, Vincenzo Catena (1525)



via Kamilly no face

segunda-feira, 18 de maio de 2020

poesias de Beatriz Nascimento

BEATRIZ NASCIMENTO
(Aracaju, 1942 — Rio de Janeiro, 1995)

Antes tudo acontecesse como antes aconteceu
Não vindo como algo novo
Seduzindo o que não estava atento
Antes tudo acontecesse como o aviso do sinal
Atenção! “Está prestes a se concretizar”
E não como serpente silenciosa
Em seu silvar
Antes tudo acontecesse quando te sentisses forte
Capaz de reagir, que pudesses sangrar
Antes tudo acontecesse como se fosse o previsto
Visto de trás ou de longe
Antes que te atingisse de frente
Antes tudo acontecesse como acontecem as histórias
De encontros e rompimentos, num mergulho sem demora
Antes tudo se passasse como passa o arco-íris
Num momento luz, noutro bruma e crepúsculo.

*

Quantos caminhos percorro
A quantos choros recorro
Ao fim de cada cansaço

O que é aquela cama
Que daqui observo?
Vazia e desfeita como o acontecido?

Quantas perguntas me faço
Se certo ou errado, ou pura desatenção?
Se procedente ou contrário
Sem chegar à decisão
De abandonar de uma vez
Sonho há muito acumulado

O que é aquela cama no escuro?
Manchada de tantas culpas
Que caminham como víboras
E sugam aos poucos meu corpo?
Quem saltará sobre ela
Para ir em meu socorro?

Quantos caminhos vivi
Em quantas veredas sofri
A ânsia de ser feliz?
Como me encontro agora
Errantes como sempre foram
As sendas que escolhi.

*

À POTÊNCIA Z

Sendas abertas à força pesada
Movimento oscilante do conhecido
Irresoluto e precipitante
Como fundo falso.

No espelho véus justapostos
Ocultam o olhar como teias metálicas
Tornando o ser difuso.
Separando definitivamente o exterior do interior
Entrechocam-se e percutem fantasias antigas
Que não se miram como a um só pertencente.
E eis que surge na arena
Dançarino flamejante de intenções
Descabido como algo que desceu em terreno ocupado
Misterioso como dádiva encantada
De longínquas paragens.

Propiciador que ignorava capítulos de sua doutrina
Arrebatado qual luz da primeira hora.
Entre trevas e lusco-fusco
Ninguém saberia dizer sua “Eternia”.
De que matéria se constituía
A que missão se destinava.

Nas cores que esbanjava
A perplexidade das combinações
Sufocava os gritos de dor
Inibia os brados de alegria.
Chamejando como picantes chicotes
A volúpia luminosa impedia os sons.
Quem era aquele viajante de tantos confins?
Confinado em seus próprios gases?

*

ESPERA

Aquilo mesmo que busco
Como saída, me interrompe
Num tempo de esquecimento
Em suspenso
Suspense. Ânsia edificada no ar
Não tenho a oferecer ao outro
A não ser uma vida concluída.
A terminar. Um exílio forçado,
Não-voluntário.
Um susto, muitos riscos
Uma eterna ascensão
Um lugar não tombado
Nenhum traço de união
Só uma obra de arte
O espaço que ocupo
Completo, não despojado
Dos meus receios e temores
Dos meus ódios e amores
Do olhar dessemelhante
De qualquer ângulo em que estás.





via face, selecionadas por Ricardo Domeneck

Autora negra

domingo, 17 de maio de 2020

mar becker

hoje: em memória de todos aqueles que estamos perdendo - mas que não se vão jamais

---

os mortos continuam morrendo
entre nós

passam-se dias, e ainda se veem fios de cabelos na escova

passam-se meses, até anos
e o pedaço de papel que foi deixado na gaveta reaparece
e pela caligrafia encontramos o pulso
e pelo pulso, o sangue

.

os mortos continuam morrendo

vão indo aos poucos, enquanto olhamos suas fotografias, seus verões passados

e vez ou outra lembramos que podemos tocar seus rostos com a ponta dos dedos

eles não se turvarão
não desaparecerão como se fossem reflexo na superfície da água

(hão de amarelar um dia, e então falaremos deles como sóis se pondo)

.

para que tenhamos onde descansar os olhos, por isso os mortos morrem assim, tão ternos

para que tenhamos altares
para que tenhamos lugares
em torno de onde
dizer alguma

palavra

---

mar becker
em: primeira versão do texto de abertura do caderno dos mortos, 2017/20
imagem: domenico a. coiro


via camile

domingo, 10 de maio de 2020

trecho de A noite dos Assassinos, de José Triana

"A Sala não é a sala, a sala é a cozinha
O Quarto não é o Quarto, o quarto é o banheiro."



via Robson no FB

Razões adicionais para os poetas mentirem, por Hans Magnus Enzensberger



Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
“Sou um desesperado”.
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
“Estou morrendo”
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto, é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.


post de Aline no face em 10/05/2020

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TO SOME I HAVE TALKED WITH BY THE FIRE, de w.b. yeats



WHILE I wrought out these fitful Danaan rhymes,
My heart would brim with dreams about the times
When we bent down above the fading coals
And talked of the dark folk who live in souls
Of passionate men, like bats in the dead trees;
And of the wayward twilight companies
Who sigh with mingled sorrow and content,
Because their blossoming dreams have never bent
Under the fruit of evil and of good:
And of the embattled flaming multitude
Who rise, wing above wing, flame above flame,
And, like a storm, cry the Ineffable Name,
And with the clashing of their sword-blades make
A rapturous music, till the morning break
And the white hush end all but the loud beat
Of their long wings, the flash of their white feet.

sábado, 18 de abril de 2020

[besouro], de Janaina Tokitaka

se os humanos fossem insetos
não tenho dúvida que seríamos
o besouro rola-esterco
arrastando eternamente
uma meticulosa esfera
moldada a partir de restos





via Maria Luiza R Souza

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Oração do milho, de Cora Coralina

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das
     lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem
   lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão
      do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a
     vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja
      dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que
      amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Trecho de A pequena suburbana, de Tom Zé

A pequena suburbana naquela periferia
Uma simples vira lata no fundo da via láctea
Sem nome sem dinastia
Pois não é que essa vadia se pinta como distinta
E ainda pensa e pondera ai quem me dera
Sei lá… uma atmosfera

Mas vejam, vejam só que a dita cuja
É uma mera suburbana e dos ares que se dá
E a pose com que se abana na brisa que ela mesma
Criou pra se refrescar, pois esta louca cigana
Ainda pensa e pondera ai quem me dera
Sei lá.. Uma atmosfera




Lidia me envia e diz: Isso me contempla tanto