terça-feira, 31 de agosto de 2021

Variations on a Theme de William Carlos William, de Kenneth Koch

  1


I chopped down the house that you had been saving to live in next

     summer.

I am sorry, but it was morning, and I had nothing to do

and its wooden beams were so inviting.



                                                                  2


We laughed at the hollyhocks together

and then I sprayed them with lye.

Forgive me. I simply do not know what I am doing.



                                                                  3


I gave away the money that you had been saving to live on for the next ten

     years.

The man who asked for it was shabby

and the firm March wind on the porch was so juicy and cold.


                                                                  4


Last evening we went dancing and I broke your leg.

Forgive me. I was clumsy, and

I wanted you here in the wards, where I am the doctor!



via poetryfoundation

via rosa neves

https://www.poetryfoundation.org/poems/57326/variations-on-a-theme-by-william-carlos-williams

Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.


O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.


Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.


Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.


Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.


Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Acordar, viver, de Carlos Drummond de Andrade


Como acordar sem sofrimento?

Recomeçar sem horror?

O sono transportou-me

àquele reino onde não existe vida

e eu quedo inerte sem paixão.


Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,

a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperas

de amanhã com as coisas ásperas de hoje?


Como proteger-me das feridas

que rasga em mim o acontecimento,

qualquer acontecimento

que lembra a Terra e sua púrpura

demente?

E mais aquela ferida que me inflijo

a cada hora, algoz

do inocente que não sou?


Ninguém responde, a vida é pétrea.



via Eduardo Lacerda no FB

A PACIÊNCIA DE SITIS, de Adriane Garcia



Você acha que você é o único justo que sofre, Jó?

Você se acha tão especial que se senta nesse monturo

De vermes e de sujeira e passa o dia

E as noites choramingando

E falando com esse seu deus surdo

E a louca sou eu?


Você acha o quê? Acha que todas essas crianças

Que passam fome à nossa volta

Pecaram contra o seu deus?

Que todos os pais e as mães que perderam

Seus filhos para a calamidade

Pecaram, nesta medida, contra o seu deus?


Você perdeu seus dez filhos

E eu, Jó?

Foi de mim que eles nasceram

Fui eu que cuidei de cada um deles

Acha que a morte deles dói mais em você

Do que em mim?


Você vê clarões no meio da noite

E ouve vozes de anjos e demônios

Você não faz ideia dos demônios

Que eu tenho visitado à noite

Para trazer o pão desta casa

Para não nos deixar à míngua, Jó


Sabe onde estive ontem? Olhe para mim!

Você nem reparou na vergonha

Dos meus cabelos curtos

Porque você não repara em mais nada, Jó

Eu vendi os meus cabelos

Para haver água nas nossas jarras


Pensa que a vida espera enquanto você chora?

Acha que cessam de nos cobrar ofertas

No templo do seu deus caridoso?

Sou eu, Jó, que durante o dia, andarilha

Feito uma escrava, saio de casa em casa

Oferecendo minhas mãos para ficarmos vivos


Esses seus amigos trazem alguma coisa?

A única coisa que vi fazerem até agora 

É encherem a sua cabeça com bobagens

Enquanto isso, lá vai a louca da Sitis

Providenciar as ervas do seu unguento

Que você despreza, que você não usa


Porque fica esperando esse seu deus surdo

Que só te oferece coleira e ameaças

Que se excita com a sua autopiedade

Enquanto você se curva

Buscando arrependimento

De quê, Jó?


Se sempre agimos como é possível agir

Neste mundo em que estamos nós por nós

Se o que vemos são ímpios exibindo felicidades

Enquanto os oprimidos só recebem castigos

Se a ordem do mundo se perde 

Na doença, na guerra, no saque


Onde está o seu deus, Jó?

Você me diz que nasceu nu e voltará nu

Mas eu tenho carregado a minha dor 

Para te vestir as roupas

Agora os sacerdotes vêm e ensinam

Que é preciso sofrer e ter calma


Pois eu digo, Jó

Se você não vai lutar contra o sofrimento

Se você não vai reconstruir 

Nosso pequeno mundo comigo

Amaldiçoa logo esse deus

E morre.



via fb da autora

domingo, 8 de agosto de 2021

CARTA AO PAI, de Ricardo Domeneck

Agora que o senhor

mais assemelha pedaço

de carne com dois olhos

dirigidos ao teto escuro

no leito em que provável

só não há-de morrer só

porque nem a própria

saliva poderá engolir

por si na companhia

somente desta sonda

que o alimenta

me pergunto se ainda

em validade a proibição

da mãe em confessar

ao senhor os hábitos

amorosos das mucosas

que são minhas

e se deveras me amaria

tanto menos soubesse

quanta fricção já tiveram

que não lhes cabia

biológica ou religiosa

-mente e se também

pediria para sua filhoa

a morte que desejou

a tantos de minha laia

quando surgiam na tela

da Globo da Record

da Manchete do SBT

que sempre constituíram

seu cordão umbilical

com a tradição

e se deveras faria

sobrevir sobre eles

grande destruição

pela violência

com que urrava

seus xingamentos

típicos de macho

nascido no interior

desse país de machos

interiores e quebrados

em seus orgulhos falhos

de crer que o pai

é o que abarrota

geladeiras e não deixa

que falte à mesa

o alimento que nutre

as mesmas mucosas

em que corre

o seu sangue

mas não seu Deus

e ora neste leito partido

o cérebro em veias

como riachos insistentes

em correr

fora das margens

se o senhor

soubesse o dolo

com que manchei

a mesa

de todos os patriarcas

ainda pergunto-me

se me receberia

com a mansidão

que aceita na testa

o beijo desta sua filhoa

que nada mais é

que a sua imagem

e semelhança invertidas

tal espelho

que refletisse opostos

de gênero e religião

ou o desenho

animado na infância

de uma Sala de Justiça

onde numa tela

podia-se observar

um mundo ao avesso

e se o Pai e o pai

odeiam deveras

o gerado nas normas

da Biologia e Religião

mais tarde porém geridos

na transgressão das leis

que o Pai e o pai

impõem-nos na ciência

de sermos todos falhos

nessa Terra onde procriar

é tão frequente

que gere prazer

nenhum e olho

o senhor

com essas pupilas

que talvez jamais

reflitam o Pai

mas ora veem o pai

eu

mesmo pedaço

de carne

com dois olhos

peço perdão

em silêncio

pois sequer posso

dizer que não

mais há tempo

e mesmo assim

e porém

e no entanto

e contudo

pelo medo adversativo

de talvez abalar

uma sistema rudimentar

de alicerces

sob a casa

sob o quarto

sob esta cama

de hospital

emprestada

escolho

uma vez mais

o silêncio


*


in 'Medir com as próprias mãos a febre' (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2015).



no FB do autor

domingo, 1 de agosto de 2021

Landscape with a Hundred Turns, de Yanyi


When you turned into a hundred rooms,

I returned each month as a door

that opened only one.


When you turned into a hundred rooms

the wind flung through

each of them wailing


and left a hundred songs

in hopes you would return for it

and me and


once, finding a doe locked up,

the trees blued up

the mountain pass, I understood


you had transformed into your multiple,

as the rain is different

each step from the moon. Sleeping


in a hundred rooms, a hundred dreams

of you appear—though by day

your voice has frozen into standing stones.


When you turned into a hundred rooms,

I met with a mirror in each eye

your growing absence.


When I moved, the shadows without you

followed me. In the hundred rooms,

I cannot pick one,


for each combines into the other

where I piece-by-piece the shadows

you have ceased


to remember. As the rain

is different each day of the year,

when I turned for you


and hoped you’d return to me,

was it I who left

and you who remained the same?


For when you changed,

I changed

the furniture in the rooms.


A hundred birds flew over a hundred fields.

A mountain flowed into a hundred rivers

then ended.





via Chris de Gel


In a hundred rooms,

I turned and turned,

hoping to return to you.


O, the chrysanthemums grew

in the hundred rooms!


Far in the past and far in the future

were those numinous and echoing stars.

domingo, 18 de julho de 2021

CARTA A UMA MENINA QUE QUERIA SER POETA, de Ana Hatherly

 

A Matilde Rosa Araújo


Quando quiseres fazer um poema

não procures imitar ninguém 

nenhum autor

cujas obras tenhas conhecido

ou mesmo

qualquer cantiga popular

cujo autor desconheças.


Não.

Não faças isso.


Quando quiseres fazer um poema

a única coisa de que precisas

é sentir essa vontade e depois

- só depois - 

decidires-te.


Um poema pode ter muitas formas:

pode ser feito com palavras

muito bonitas

ou muito engraçadas

muito bem escritas e alinhadas

numa linda folha de papel

mas também pode ser rabiscado

ou com figuras.


Pode ser a preto e branco

ou a cores 

pode ser a tinta

a lápis

a esferográfica

a ponta de feltro

sobre papel

plástico

lousa

pedras

sei lá

até pode ser de areia

de pano

de folhas

pode ser só feito com a voz 

falado

cantado

murmurado

dito

só dentro da cabeça da gente 

ou então representado no palco 

com gestos 

caretas várias

aos saltos

cambalhotas

ou imovelmente.


Um poema pode ser tudo isso

pode ter essas formas todas 

porque a poesia está 

onde a soubermos encontrar

ou colocar.


A poesia é uma coisa que está 

ou tem de estar 

dentro de nós

e que nós 

por isso

podemos projectar em tudo.


A poesia não é só uma arte 

é um princípio

quer dizer 

uma lei da nossa sensibilidade. 

O que a poesia exige de nós

é só uma coisa: 

liberdade

porque a liberdade

é a lei mais importante da criação

a lei mais importante da felicidade.


A poesia é um acto livre

tem de ser um acto livre. 

Mas também é um jogo

um conjunto de regras

que a nós próprios impomos 

para com elas praticarmos 

um acto que nos torna felizes.


Todas as formas de arte

nascem dessa liberdade

dessa iniciativa 

que nos leva a criar 

coisas

casas

livros

palavras.


A poesia é para sermos felizes

e comunicarmos 

essa felicidade. 

Quando a poesia 

trata de assuntos tristes

está a queixar-se 

da falta de alegria 

dos momentos infelizes do mundo

que não deixam criar 

realidades belas

novas

generosas.


No entanto

quando um poeta cria 

um poema 

um objecto

uma coisa qualquer 

nesse momento exacto 

não pensa em nada disso: 

vive simplesmente um impulso

a que ele se entrega 

e depois entrega ao mundo.


Por isso

se tudo o que te apetece

é simplesmente 

deitares-te no chão 

e olhar o céu 

podes crer

também isso é poesia

e basta.


Ana Hatherly, ITINERÁRIOS, ed. Quasi



Via: opoemaensinaacair

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Trecho do conto "O Espelho", de Guimarães Rosa

 Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta- lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.    




Via Lidia L

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Poemas de Maria do Carmo Ferreira

 


A QUEM INTERESSAR POSSA


Um pessoa

do sexo

feminino

38 anos

1,65

66 kg

sem lar

sem filhos

sem família

sem negócios

sem esperança

com 108 contos

na poupança.


Garante que possui

matéria-prima

para literatura

teatro

baby-sitter

trabalhos manuais.

Gosta de música.

Chega a tocar

de ouvido.

Conhece inglês

e línguas neo-latinas.

É boa datilógrafa.

Cozinha o trivial.

Prefere a natureza

à vida na cidade.

Amor, quase não faz

porém se adapta sem-

pre ao item men-

cionado.


Falta-lhe alma

um sopro que a reanime.

Se veleidades tem

é de sentir-se real.

Vive

por força

de viver

mas corre o risco

de se deixar morrer

sem que se dê


POR ISSO

oferece-se a quem

interessar possa

uma coisa

uma causa

uma pessoa

alguém

um problema social:

o caso dessa moça.


*


AUTO-RETRATO


Nasci no rame-rame das abóboras.

Meu plano é horizontal. Vivo de cócoras.


Se me ergo, me espatifo. A gravidade

colou meu ser ao chão: cresço à vontade.


A crosta é dura. No corpo volumoso

a polpa é só fartura e paga o esforço


de rastejar como uma tartaruga

e refletir ao sol minha armadura.


Uma fome objetiva me devora

como a dos porcos que não comem pérolas


ou a dos pobres que não comem porcos.

Com ou sem sal, metáfora ou pletora


viro alimento no momento justo.

Ao fogo brando e lento mais me aguço.


Não sinto a tentação das ramas altas:

maracujá, chuchu, nada me exalta.


Nem mesmo a solidão das uvas verdes

quando o desdém dos homens as prescreve.


No ventre universal ocupo um espaço.

A vida faz-se em mim. Vegeto, e passo.




,,,,,

Via Ricardo Domeneck

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Todas íbamos a ser reinas, de Gabriela Mistral


 Todas íbamos a ser reinas,

de cuatro reinos sobre el mar: 

Rosalía con Efigenia 

y Lucila con Soledad.

En el valle de Elqui, ceñido
de cien montañas o de más,
que como ofrendas o tributos
arden en rojo y azafrán.

Lo decíamos embriagadas,
y lo tuvimos por verdad,
que seríamos todas reinas
y llegaríamos al mar.

Con las trenzas de los siete años,
y batas claras de percal,
persiguiendo tordos huidos
en la sombra del higueral.

De los cuatro reinos, decíamos,
indudables como el Korán,
que por grandes y por cabales
alcanzarían hasta el mar.

Cuatro esposos desposarían,
por el tiempo de desposar,
y eran reyes y cantadores
como David, rey de Judá.

Y de ser grandes nuestros reinos,
ellos tendrían, sin faltar,
mares verdes, mares de algas,
y el ave loca del faisán.

Y de tener todos los frutos,
árbol de leche, árbol del pan,
el guayacán no cortaríamos
ni morderíamos metal.

Todas íbamos a ser reinas,
y de verídico reinar;
pero ninguna ha sido reina
ni en Arauco ni en Copán...

Rosalía besó marino
ya desposado con el mar,
y al besador, en las Guaitecas,
se lo comió la tempestad.

Soledad crió siete hermanos
y su sangre dejó en su pan,
y sus ojos quedaron negros
de no haber visto nunca el mar.

En las viñas de Montegrande,
con su puro seno candeal,
mece los hijos de otras reinas
y los suyos nunca-jamás.

Efigenia cruzó extranjero
en las rutas, y sin hablar,
le siguió, sin saberle nombre,
porque el hombre parece el mar.

Y Lucila, que hablaba a río,
a montaña y cañaveral,
en las lunas de la locura
recibió reino de verdad.

En las nubes contó diez hijos
y en los salares su reinar,
en los ríos ha visto esposos
y su manto en la tempestad.

Pero en el valle de Elqui, donde
son cien montañas o son más,
cantan las otras que vinieron
y las que vienen cantarán:

-"En la tierra seremos reinas,
y de verídico reinar,
y siendo grandes nuestros reinos,
llegaremos todas al mar."


Lida por Patrícia Osses, esta noite, bebendo um reservado carmenere, pós um pesto, me sentindo plena com pessoas-amores

quinta-feira, 3 de junho de 2021

cristo na cruz, de jorge luis borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.

As três vigas são de igual altura.

Cristo não está no meio. É o terceiro.

A negra barba pende sobre o peito.

O rosto não é o rosto das lâminas.

E áspero e judeu. Não o vejo

e o seguirei buscando até o dia

último de meus passos pela terra.

O homem violado sofre e cala.

A coroa de espinhos o lastima.

Não o alcança o escárnio da plebe

que viu sua agonia tantas vezes.

A sua ou a de outro. Dá no mesmo.

Cristo na cruz. Desordenadamente

pensa no reino que talvez o espera,

pensa em uma mulher que não foi sua.

Não lhe é dado ver a teologia,

a indecifrável Trindade, os gnósticos,

as catedrais, a navalha de Occam,

a púrpura, a mitra, a liturgia,

a conversão de Guthrum pela espada,

a Inquisição, o sangue dos mártires,

as atrozes Cruzadas, Joana D’Arc,

o Vaticano que bendiz exércitos.

Sabe que não é um deus e que é um homem

que morre com o dia. Não lhe importa.

Lhe importa o duro ferro dos cravos.

Não é um romano. Não é um grego. Geme.

Nos deixou esplêndidas metáforas

e uma doutrina do perdão que pode

anular o passado. (Essa sentença

foi escrita por um irlandês em um cárcere.)

A alma busca o fim, com urgência.

Escureceu um pouco. Já morreu.

Anda uma mosca pela carne quieta.

Que pode me servir que aquele homem

tenha sofrido, se eu sofro agora?




via Rosa

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Descendência, de Mariana Ianelli

 Sou o poema tresmalhado

Que um lobo traz à boca

Como prêmio

De um passeio ao campo.


Vive em mim

O irmão mais velho

Debruçado sobre o chão

Cavando, cavando com as unhas.


Aqui uma cidade se levanta,

Força e música,

Já a prostituta distribui

Os seus encantos.


Uma primeira espada

Deslizando

E há o deserto em mim,

Que seca todo pranto.


Morre aqui eternamente

O ladrão do fogo,

Morre Abel, a cada verso

A terra faz ouvir seu sangue.


O animal que há milênios

Me carrega

Tem a marca

Da educação pela sombra.




via: https://rascunho.com.br/noticias/mariana-ianelli/

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Manifesto Populista, de Lawrence Ferlinghetti, tradução de Leonardo de Magalhaens

Poetas! Dêem o fora de seus gabinetes,

abram suas janelas, abram suas portas,

vocês já ficaram muito tempo no fundo

de seus mundos fechados.

Venham, desçam

de suas Colinas Russas e Colinas Telegráficas,

suas Colinas do Farol e suas Colinas da Capela,

seus Montes Analógicos e Montes Parnasos,

desçam de suas colinas e montanhas,

fora de suas tendas e domos.

As árvores são derrubadas

e nós não voltaremos para as florestas.

Não há tempo para ficar sentado

quando o homem queima sua própria casa

para assar seu porco

Nada de cantar Hare Khrishna

enquanto Roma queima.

San Francisco está queimando,

a Moscou de Maiakovski está queimando

os combustíveis-fósseis da vida.

Noite e o Cavalo aproximam-se

devorando luz, calor e poder,

e as nuvens têm calças.

Não há tempo para o artista se esconder

acima, além, debaixo dos cenários,

indiferente, aparando suas unhas,

refinando-se fora da existência.

Não há tempo para os nossos joguinhos literários,

não há tempo para nossas paranóias e hipocondrias,

não há tempo para medo e náusea,

há tempo somente para luz e amor.

Temos sido as melhores mentes de nossa geração

destruídas pelo tédio das leituras poéticas.

Poesia não é uma sociedade secreta,

muito menos um templo.

Palavras secretas e cânticos não interessam.

A hora de profetizar já passou,

o tempo de entusiasmo chegou,

um tempo para entusiasmo e alegria

sobre o vindouro final

da civilização industrial

que é péssima para a Terra e o Homem.

É hora de olhar pra fora

na completa posição de lótus

com olhos bem abertos,

É hora de abrir suas bocas

com um novo discurso aberto,

É hora de comunicar com todos os seres sensíveis,

Todos vocês ‘Poetas das Cidades’

pendurados em museus incluindo a mim mesmo,

Todos vocês poetas de poetas escrevendo poesia

sobre poesia,

Todos vocês poetas de oficinas de poesia

no coração farrista da América

Todos vocês arrombados Ezra Pounds

Todos vocês remotos estanhos excluídos poetas,

Todos vocês estressados poetas do Concreto,

Todos vocês poetas lambedores-de-cu,

Todos vocês poetas de toilete gemendo com grafite,

Todos vocês gigantes de trem classe A que nunca gingam

em vasos de plantas

Todos vocês da serraria nas Sibérias da América,

Todos vocês irrealistas sem-olhos,

Todos vocês auto-ocultados supersurrealistas,

Todos vocês visionários de quarto e agitadores-propagandistas

de gabinete,

Todos vocês poetas Groucho Marxistas

e camaradas da classe-desocupada

que descansam o dia todo e discutem sobre o proletariado,

todos vocês católicos anarquistas da poesia,

Todos vocês Black Montanhistas da poesia,

Todos vocês bucólicos Brahims e Bolinas de Boston,

Todos vocês mães-reclusas da poesia,

Todos vocês irmãos-zen da poesia,

Todos vocês amantes suicidas da poesia,

Todos vocês cabeludos professores da poesia,

Todos vocês resenhistas de poesia

bebendo o sangue do poeta,

Todos vocês Polícia da Poesia –

Onde estão as selvagens crianças de Whitman,

onde as grandiosas vozes se expressam

com um sentido de doçura e sublimidade,

onde a grandiosa nova visão,

a grandiosa visão-mundial,

a elevada canção profética

da imensa terra

e tudo o que canta nela

e nossa relações com ela ?

Poetas, desçam

para as ruas do mundo outra vez

E abram suas mentes e olhos

com o antigo deleite visual,

limpem suas goelas e falem,

Poesia está morta, vida longa à poesia

com olhos terríveis e força de búfalo.

Não esperem a Revolução

ou que aconteça sem vocês,

Parem de murmurar e falem alto

com uma nova poesia ampla

com um nova comum-sensual ‘superfície pública’

com outros níveis subjetivos

ou outros níveis subversivos,

um afinado garfo no ouvido íntimo

a golpear sob a superfície.

De seus próprios suaves Eus ainda cantam

Ainda completo ‘a palavra em massa’

‘Poesia o comum condutor

para o transporte do público

aos lugares mais elevados

que outras rodas podem conduzir.

Poesia ainda precipita-se dos céus

em nossas ruas ainda livres.

Eles não ergueram as barricadas, ainda,

as ruas ainda vivem com as faces,

amáveis homens e mulheres ainda caminham,

ainda amáveis criaturas por todos os lugares,

nos olhos de todos o segredo de todos

ainda enterrados lá,

as selvagens crianças de Whitman ainda dormem lá,

despertam e caminham livremente.


Em: http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/08/lawrence-ferlinghetti-manifesto.html?m=1

conheci na oficina do poeta Rico Lopes hoje mesmo

poema original em http://www.poemhunter.com/best-poems/lawrence-ferlinghetti/populist-manifesto-no-1/


domingo, 16 de maio de 2021

Eu era gases puro, de Stela do Patrocínio

eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

eu era ar, espaço vazio, tempo

e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó

eu não tinha formação

não tinha formatura

não tinha onde fazer cabeça

fazer braço, fazer corpo

fazer orelha, fazer nariz

fazer céu da boca, fazer falatório

fazer músculo, fazer dente

eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

fazer cabeça, pensar em alguma coisa

ser útil, inteligente, ser raciocínio

não tinha onde tirar nada disso

eu era espaço vazio puro




via camila leite no face

terça-feira, 11 de maio de 2021

To live in the borderlands, by Gloria Anzaldua

To live in the borderlands means you

are neither hispana india negra espanola

ni gabacha, eres mestiza, mulata, half-breed

caught in the crossfire between camps

while carrying all five races on your back

not knowing which side to turn to, run from;

To live in the Borderlands means knowing that the india in you, betrayed for 500 years,

is no longer speaking to you,

the mexicanas call you rajetas, that denying the Anglo inside you

is as bad as having denied the Indian or Black;

Cuando vives en la frontera

people walk through you, the wind steals your voice,

you’re a burra, buey, scapegoat,

forerunner of a new race,

half and half-both woman and man, neither-a new gender;

To live in the Borderlands means to

put chile in the borscht,

eat whole wheat tortillas,

speak Tex-Mex with a Brooklyn accent;

be stopped by la migra at the border checkpoints;

Living in the Borderlands means you fight hard to

resist the gold elixir beckoning from the bottle,

the pull of the gun barrel,

the rope crushing the hollow of your throat;

In the Borderlands

you are the battleground

where enemies are kin to each other;

you are at home, a stranger,

the border disputes have been settled

the volley of shots have scattered the truce

you are wounded, lost in action

dead, fighting back;

To live in the Borderlands means

the mill with the razor white teeth wants to shred off

your olive-red skin, crush out the kernel, your heart

pound you pinch you roll you out

smelling like white bread but dead;

To survive the Borderlands

you must live sin fronteras

be a crossroads.



via Lidia

Porque eu não pude parar para a Morte, de Emily Dickinson, tradução de Henry Alfred Bugalho

Porque eu não pude parar para a Morte –

Ela gentilmente parou para mim –

Na Carruagem, apenas nós –

E a Imortalidade.


Nós viajamos lentamente – Ela não tinha pressa

E eu tive de pôr de lado

Meu trabalho e meu lazer,

Por Delicadeza –


Passamos pela Escola, onde Crianças se exercitavam

No Recreio – no Pátio –

Passamos pelos Campos dos Grãos Maduros –

Passamos pelo Sol Poente –


Ou melhor – Ele passou por nós –

O Orvalho veio tremulante e cálido –

Apenas como Fina Trama, minhas Vestes –

Meu Xale – apenas Tule –


Estacamos diante duma Casa que parecia

Uma Elevação do Solo –

Do Telhado pouco se via –

A Cornija – a tocar o Chão –


Desde então – por Séculos – e ainda

Mais breve que o Dia

Constatei que as Cabeças dos Cavalos

Voltavam-se para a Eternidade – 



enviado por aluno do cepae

link: http://www.revistasamizdat.com/2008/10/poemas-de-emily-dickinson.html

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Dentro da perda da memória, de João Cabral de Melo Neto

Dentro da perda da memória

uma mulher azul estava deitada

que escondia entre os braços

desses pássaros friíssimos

que a lua sopra alta noite

nos ombros nus do retrato.

E do retrato nasciam duas flores

(dois olhos dois seios dois clarinetes)

que em certas horas do dia

cresciam prodigiosamente

para que as bicicletas de meu desespero

corressem sobre seus cabelos.

E nas bicicletas que eram poemas

chegavam meus amigos alucinados.

Sentados em desordem aparente,

ai-los a engolir regularmente seus relógios

enquanto o hierofante armado cavaleiro

movia inutilmente seu único braço.



via isali

via http://www.apocaodepanoramix.com.br/dentro-da-perda-da-memoria-de-joao-cabral-de-melo-neto/

terça-feira, 27 de abril de 2021

Amar, de Drummond

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?


Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o amar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?


Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.


Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Como aquel que en soñar gusto recibe, de Juan Boscan [Oh Sombra!]

Como aquel que en soñar gusto recibe,

su gusto procediendo de locura,

así el imaginar con su figura

vanamente su gozo en mí concibe.


Otro bien en mí, triste, no se escribe,

si no es aquel que en mi pensar procura;

de cuanto ha sido hecho en mi ventura

lo sólo imaginado es lo que vive.


Teme mi corazón de ir adelante,

viendo estar su dolor puesto en celada;

y así revuelve atrás en un instante


a contemplar su gloria ya pasada.

¡Oh sombra de remedio inconstante,

ser en mí lo mejor lo que no es nada!



via: versão musicada de Electrelane

fonte: http://amediavoz.com/boscan.htm

Quero escrever o borrão vermelho de sangue, de Clarice Lispectos

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

com as gotas e coágulos pingando

de dentro para dentro.

Quero escrever amarelo-ouro

com raios de translucidez.

Que não me entendam

pouco-se-me-dá.

Nada tenho a perder.

Jogo tudo na violência

que sempre me povoou,

o grito áspero e agudo e prolongado,

o grito que eu,

por falso respeito humano,

não dei.


Mas aqui vai o meu berro

me rasgando as profundas entranhas

de onde brota o estertor ambicionado.

Quero abarcar o mundo

com o terremoto causado pelo grito.

O clímax de minha vida será a morte.


Quero escrever noções

sem o uso abusivo da palavra.

Só me resta ficar nua:

nada tenho mais a perder.



enviada por Nath na ocasião de "fazer de palavra"

via https://www.escritas.org/pt/t/5445/quero-escrever-o-borrao-vermelho-de-sangue

quarta-feira, 14 de abril de 2021

JÁ NÃO, de Idea Vilariño, trad. por Vasco Gato

 JÁ NÃO 


Já não será 

já não 

não viveremos juntos 

não criarei o teu filho

não coserei a tua roupa 

não te terei à noite 

não te beijarei ao partir 

nunca saberás quem fui 

porque é que outros me amaram. 

Nunca chegarei a saber 

porquê nem como 

nem se era a sério 

o que disseste que era 

nem quem foste 

nem o que fui para ti

nem como teria sido 

vivermos juntos 

amarmo-nos 

esperarmos um pelo outro 

estarmos. 

Já não sou mais do que eu

para sempre e tu 

já 

não serás para mim 

mais do que tu. Já não estás 

num dia futuro 

não saberei onde vives 

com quem 

nem se te lembras. 

Nunca me abraçarás

como naquela noite

nunca. 

Não voltarei a tocar-te.

Não te verei morrer. 


Idea Vilariño, LACRAU, traduções e versões de poesia por Vasco Gato, edição Língua Morta




Via opoemaensinaacair

domingo, 11 de abril de 2021

Fear and the monkey, Burroughs, traduzido por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça: "o medo e o macaco"

 POETA: WILLIAM S. BURROUGHS

William Seward Burroughs II (St. Louis, 5 de fevereiro de 1914 — Lawrence, 2 de agosto de 1997) foi um escritor, pintor e crítico social nascido nos Estados Unidos da América.


POEMA – FEAR AND THE MONKEY

Turgid itch and the perfume of death

On a whispering south wind

A smell of abyss and of nothingness

Dark Angel of the wanderers howls through the loft

With sick smelling sleep

Morning dream of a lost monkey

Born and muffled under old whimsies

With rose leaves in closed jars

Fear and the monkey

Sour taste of green fruit in the dawn

The air milky and spiced with the trade winds

White flesh was showing

His jeans were so old

Leg shadows by the sea

Morning light

On the sky light of a little shop

On the odor of cheap wine in the sailors’ quarter

On the fountain sobbing in the police courtyards

On the statue of moldy stone

On the little boy whistling to stray dogs.

Wanderers cling to their fading home

A lost train whistle wan and muffled

In the loft night taste of water

Morning light on milky flesh

Turgid itch ghost hand

Sad as the death of monkeys

Thy father a falling star

Crystal bone into thin air

Night sky

Dispersal and emptiness.

— August 1978.


(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)

MEDO E O MACACO

Coceira irritante e o perfume da morte

No sussurrante vento sul

Cheiro de abismo e nada

O Anjo Vil dos vagabundos uiva pelo apartamento

Como um sono cheirando a doença

Sonho matutino de um macaco perdido

Nascido e sufocado por velhas fantasias

Com pétalas de rosa em frascos fechados

Medo e o macaco

Gosto amargo de fruta verde ao amanhecer

O ar lácteo e picante da brisa marinha

Carne branca denuncia

Teus jeans tão desbotados

Perna sob sombras do mar

Luz da manhã

No néon celeste de um armazém

No cheiro do vinho barato no bairro dos marujos

Na fonte soluçante do patío da polícia

Na estátua de pedra embolorada

No molequinho assobiando para vira-latas.

Vagabundos agarram suas casa imaginárias

Um trem perdido apita vago e abafado

No apartamento noite gosto d’água

Luz da manhã em carne láctea

Coceira irritante mão fantasma

Triste como a morte dos macacos

Teu pai uma estrela cadente

Osso de cristal no ar fino

Céu noturno

Dispersão e vazio.

(Em Vozes & VIsões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje, Editora Iluminuras, 1994)



dica de Alda Alexandre

achado em:

https://boni.wordpress.com/2017/02/05/098/

sábado, 10 de abril de 2021

Frágil é a minha marcha, de Marina Tsvetáieva, tradução de Igor Werneck

 [1 de Novembro de 1918]


Frágil é a minha marcha

- puro sinal da consciência

Frágil é a minha marcha,

e sonante a minha toada


Deus a mim fez só

Em meio a vasto mundo

Mulher não és, mas pássaro,

dessarte – voa e canta.


link: https://revistamododeusar.blogspot.com/2017/07/marina-tsvetaeva-em-traducoes-de-igor.html

sábado, 27 de março de 2021

O Poema Ensina a Cair, de Luiza Jorge Neto

O poema ensina a cair

sobre vários solos

desde perder o chão repentino sob os pés

como se perde os sentidos numa

queda de amor,ao encontro

do cabo onde a terra abate e

a fecunda ausência excede

até à queda vinda

da lenta volúpia de cair,

quando a face antige o solo

numa curva delgada subtil

uma vénia a ninguém de especial

ou especialmente a nós uma homenagem

póstuma.



via: https://www.escritas.org/pt/t/3300/o-poema-ensina-a-cair 

quinta-feira, 25 de março de 2021

A Fábrica do Poema, de Waly Salomão

 (In memoriam Donna Lina Bo Bardi)

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.

sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

(de “O mel do melhor”, Rocco, 2001)



Via

revistamacondo


https://revistamacondo.wordpress.com/2013/07/05/poema-fabrica-do-poema-waly-salomao/


terça-feira, 16 de março de 2021

Morte no Avião, de Carlos Drummond de Andrade

 Acordo para a morte.

Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco. Para que
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.


Almoço. Para quê? Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro de velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.


O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, prununcio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.
Declino a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.


Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfale o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.


Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.


Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.


Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.


A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.


Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão parecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
dos sopros robustos prestes a desfazer-se.


E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morres se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.


Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.


Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.




recebido de um participante da oficina de criação poética

DINOSAURIA, WE, de Charles Bukowski

nascido assim

nisso


como o giz de faces sorridentes

como a Sra. Morte às gargalhadas

como as paisagens políticas dissolvidas

como o peixe oleoso cuspido

fora de sua oleosa vítima.


nós nascemos assim

nisso


nos hospitais que são tão caros

que são baratos para morrer

com advogados que cobram muito

é mais barato pleitear a culpa

num país onde as cadeias estão cheias

e os hospícios estão fechados

num lugar onde as massas elevam a heróis

os idiotas ricos


nascido nisso

andando e vivendo nisso

morrendo por causa disso

castrado

corrompido

deserdado

por causa disso


os dedos se estenderam para um deus irresponsável

os dedos alcançaram a garrafa

a pílula

o poder


nós nascemos nessa triste linha da morte

nascemos em um governo em débito há 60 anos

incapaz de se interessar em pagar esse débito

e os bancos vão se queimar

o dinheiro será inútil

estará aberto e impunível o assassinato nas ruas

serão armas e multidões passageiras

a terra será inútil

a comida terá um retorno mínimo

o poder nuclear será tomado por muitos

as explosões continuarão balançando o mundo

os ricos e escolhidos olharão

das plataformas do espaço

o inferno de Dante será feito para olhar

como um campo de jogos de crianças

o sol não será visto e será sempre noite

as árvores morrerão

toda a vegetação morrerá

homens radioativos comerão

a carne dos homens radioativos

o mar será envenenado

os lagos e rios desaparecerão

a chuva será ouro novo

os corpos apodrecidos do homem

e dos animais vão feder

os últimos sobreviventes serão alcançados

por doenças novas e medonhas

e as plataformas do espaço

serão destruídas pelo seu atrito

com materiais do lado de fora

efeito natural da deterioração

e lá estará um bonito silêncio

nunca ouvido


Nascido fora disso

o sol estará à espera

do próximo capítulo.


Referência:

BUKOWSKI, Charles. Dinosauria, We. The Last Night of the Earth Poems. 1992.

via: http://www.chacomletras.com.br/2017/02/a-visao-apocaliptica-de-bukowski/



recebido de uma participante da oficina de criação poética

sábado, 13 de março de 2021

Destruidor de Lares, de Ocean Vuong, tradução de Rogério Gallindo

 & nós dançávamos assim: vestidos brancos das mães

que transbordavam nossos pés, o fim de agosto

colorindo as nossas mãos de um rubro escuro. & nos amávamos assim:
com vodka & uma tarde no ático, os teus dedos

entre os meus cabelos — os meus cabelos em fogo. Cobríamos
o ouvido e o chilique do teu pai se transformava

em pulsações. Quando os nossos lábios se tocavam o dia se encerrava
num caixão. No museu do coração

há duas pessoas sem cabeça construindo uma casa em chamas.
A espingarda esteve sempre lá sobre a

lareira. Sempre uma outra hora para matar — só para implorar
a um deus que nos devolva. Senão o ático, o carro. Senão

o carro, o sonho. Senão o menino, as suas roupas. Se não vive,
desligue o telefone. Porque o ano é uma distância

que viajamos em círculos. O que quer dizer: nós dançávamos
assim: sozinhos em corpos que dormem. O que quer dizer:

nós nos amávamos assim: uma faca na língua se transformando
em uma língua.



via: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/tres-poemas-de-ocean-vuong/

Limiar, de Ocean Vuong, tradução de Rogério Galindo

 No corpo, onde tudo tem seu preço,

              eu era um mendigo. Ajoelhado,

olhava, pela fechadura, não
              o homem no banho, mas a chuva

a atravessar seu corpo: cordas de guitarra a
                estalar sobre ombros em forma de globo.

Ele cantava, e é por isso
             que eu lembro. Sua voz

me preenchia até a medula
             como um esqueleto. Até mesmo meu nome

se ajoelhava dentro de mim, pedindo
                para ser poupado.

Ele cantava. É tudo que lembro.
                Pois no corpo, onde tudo tem seu preço,

eu estava vivo. Eu não sabia
                que havia motivo melhor.

Que certa manhã meu pai ia parar
                — potro negro em tempestade —

& tentar escutar minha respiração contida
                atrás da porta. Eu não sabia que o custo

de entrar numa canção — era perder
                o caminho de volta.

Por isso entrei. Por isso perdi.
                Perdi tudo com meus olhos

bem abertos.



via: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/tres-poemas-de-ocean-vuong/

sexta-feira, 12 de março de 2021

Sete Poemas do Pássaro, de Orides Fontela

 I

O pássaro é definitivo

por isso não o procuremos:

ele nos elegerá.


II

Se for esta a hora do pássaro

abre-te e saberás

o instante eterno.


III

Nunca será mais a mesma

nossa atmosfera

pois sustentamos o vôo

que nos sustenta.


IV

O pássaro é lúcido

e nos retalha.

Sangramos. Nunca haverá

cicatrização possível

para este rumo.


V

Este pássaro é reto;

arquiteta o real e é o real mesmo.


VI

Nunca saberemos

tanta pureza:

pássaro devorando-nos

enquanto o cantamos.


VII

Na luz do vôo profundo

existiremos neste pássaro:

ele nos vive.




via Alda Alexandre

fonte: https://oescriba.org/2018/07/17/sete-poemas-do-passaro-orides-fontela-umpoemapordia/

quinta-feira, 11 de março de 2021

Era manhã de Setembro, de Carlos Drummond de Andrade

 Era manhã de setembro

e

 ela me beijava o membro 


Aviões e nuvens passavam

coros negros rebramiam

ela me beijava o membro


O meu tempo de menino

o meu tempo ainda futuro

cruzados floriam junto


Ela me beijava o membro


Um passarinho cantava,

bem dentro da árvore, dentro

da terra, de mim, da morte


Morte e primavera em rama

disputavam-se a água clara

água que dobrava a sede


Ela me beijando o membro


Tudo o que eu tivera sido

quanto me fora defeso

já não formava sentido


Somente rosa crispada

o talo ardente, uma flama

aquele êxtase na grama


Ela a me beijar o membro


Dos beijos era o mais casto

na pureza despojada

que é própria das coisas dadas


Nem era preito de escrava

enrodilhada na sombra

mas presente de rainha


tornando-se coisa minha

circulando-me no sangue

e doce e lento e erradio


como beijara uma santa

no mais divino transporte

e num solene arrepio


beijava beijava o membro


Pensando nos outros homens

eu tinha pena de todos

aprisionados no mundo


Meu império se estendia

por toda a praia deserta

e a cada sentido alerta


Ela me beijava o membro


O capítulo do ser

o mistério de existir

o desencontro de amar


eram tudo ondas caladas

morrendo num cais longínquo

e uma cidade se erguia


radiante de pedrarias

e de ódios apaziguados

e o espasmo vinha na brisa


para consigo furtar-me

se antes não me desfolhava

como um cabelo se alisa


e me tornava disperso

todo em circulos concêntricos

na fumaça do universo


Beijava o membro


beijava

e se morria beijando

a renascer em setembro



via ayrton b.

Os Amigos Que Morrem, de Fiama Hasse Pais Brandao

 

Os amigos que morrem são arbóreos,

plantados e memoráveis como freixos.

Um freixo, que vejo entre árvores

como a aura, o tronco novo

sulcado de rasgões, a raiz curta

comparável à memória viva enterrada.

Têm uma única forma até à morte, próximos do Sol,

que torna as outras árvores mais ténues que os isolados freixos.


via: https://www.escritas.org/pt/t/3147/os-amigos-que-morrem indicação de poeta de ayrton b.

El laberinto de la soledad, de Eucanaã Ferraz

 Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.

Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se limitava a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatros, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das luas e lobisomens,
de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem somente para chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassarar parede,
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas discussões das metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável; um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamante isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodka, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando aparecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.


O Divisor, de Edwin Morgan

 Continuo pensando em você - o que é ridículo. 

Estes anos entre nós como um mar.

E a dignidade que veio com o tempo 

impediria meu lápis sobre o papel.

O som estava ligado; você pediu pelos Stones; 

conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.

As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem. 

Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.

Não há razão para isto, nenhuma.

Você diria que não posso ser o que não sou, 

mesmo que eu não possa ser o que sou.

Onde isso nos leva? O que podemos fazer?

O silêncio após Jagger foi como uma capa 

que eu teria jogado sobre você - havia apenas 

o vento, e o relógio batia enquanto você bebia, 

agarrando a caneca verde entre as mãos.

Não olhe para cima assim de repente!

Como é duro não olhar você.

Chegamos ao ponto de não falar 

e não se preocupar, e aquilo 

foi quase feliz. Então, mais tarde,

quando você deitou sobre o cotovelo no carpete 

não senti nada além de uma punhalada 

de dor me dizendo o que era, 

e não posso dizer para você, nem uma palavra.


[In Edwin Morgan - Poetas do Mundo, seleção, tradução e introdução de Virna Teixeira, Brasília, Ed. UNB, 2006, pp. 29-31]. 


via: http://www.banquetepoetico.com.br/2013/11/edwin-morgan.html?m=1

domingo, 7 de março de 2021

trecho de Utopia de um homem que está cansado, de Jorge Luís Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr.

 — Trata-se de uma citação? — perguntei.

— Com certeza. Só nos restam citações. A língua é um sistema de citações.

In : Utopia de um homem que está cansado - Jorge Luís Borges

Cantares, de Antonio Machado

Tudo passa e tudo fica

porém o nosso é passar,

passar fazendo caminhos

caminhos sobre o mar


Nunca persegui a glória

nem deixar na memória

dos homens minha canção

eu amo os mundos sutis

leves e gentis,

como bolhas de sabão


Gosto de ver-los pintar-se

de sol e grená, voar

abaixo o céu azul, tremer

subitamente e quebrar-se…


Nunca persegui a glória


Caminhante, são tuas pegadas

o caminho e nada mais;

caminhante, não há caminho,

se faz caminho ao andar


Ao andar se faz caminho

e ao voltar a vista atrás

se vê a senda que nunca

se há de voltar a pisar


Caminhante não há caminho

senão há marcas no mar…


Faz algum tempo neste lugar

onde hoje os bosques se vestem de espinhos

se ouviu a voz de um poeta gritar

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar”…


Golpe a golpe, verso a verso…


Morreu o poeta longe do lar

cobre-lhe o pó de um país vizinho.

Ao afastar-se lhe viram chorar

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar…”


Golpe a golpe, verso a verso…


Quando o pintassilgo não pode cantar.

Quando o poeta é um peregrino.

Quando de nada nos serve rezar.

“Caminhante não há caminho,

se faz caminho ao andar…”


Golpe a golpe, verso a verso.


(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

quinta-feira, 4 de março de 2021

Cântico Negro, de José Régio

 Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!




via: Arthur M. C.

via: https://www.culturagenial.com/poema-cantico-negro-de-jose-regio/

terça-feira, 2 de março de 2021

Psicologia da Composição, de João Cabral de Melo Neto

 1.


Saio de meu poema

como quem lava as mãos.


Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.


Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;


talvez, como a camisa

vazia, que despi.


2.


Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.


Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.


Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;


como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.


3.


Neste papel

pode teu sal

virar cinza;


pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.


(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)


Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas


flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.


(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)


4.


O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro; rompendo

seu branco fio, seu cimento

mudo e fresco.


(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)


5.


Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.


Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio de mel

(do dia que abriu

também como flor)


que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido

contra o açúcar do podre.


6.


Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;


não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;


mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola,


aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.


7.

É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.


São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.


É mineral

a linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.


É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza


da palavra escrita.


8.


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas.


(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

caiu, fruto!


Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:


então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;


onde foi palavra

(potros ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio.



Paisagem pelo Telefone, de João Cabral de Mello Neto

PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,


sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,


a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,


Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,


sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,


que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol que as veste

e tampouco as ilumina,


mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.


Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesse envolvida,


fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,


e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria


que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,


sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.



Publicado no livro Quaderna (1960).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.225-227.

(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)


via: https://www.escritas.org/pt/t/11506/paisagem-pelo-telefone

indicação de: ayrton b.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Hilda Hilst em Poemas aos Homens de nosso tempo

X


Amada vida:


Que essa garra de ferro


Imensa


Que apunhala a palavra


Se afaste


Da boca dos poetas.


PÁSSARO-PALAVRA


LIVRE


VOLÚPIA DE SER ASA


NA MINHA BOCA.


Que essa garra de ferro


Imensa


Que me dilacera


Desapareça


Do ensolarado roteiro


Do poeta.


PÁSSARO-PALAVRA


LIVRE


VOLÚPIA DE SER ASA


NA MINHA BOCA.


Que essa garra de ferro


Calcinada


Se desfaça


Diante da luz


Intensa da palavra.


PALAVRA-LIVRE


Volúpia de ser pássaro


Amada vertiginosa.


Asa.


XI


Se o teu, o meu, nosso do tigre


Se fizesse livre, como seria?


Se convivesses unânime


Como as estrias do dorso


Desse tigre


Convivem com seu todo


Te farias mais garra?


Ou mais crueza? Ou nasceria


Em ti uma outra criatura


Límpida, solar, ígnea?


Tentarias a sorte de saltar


Em direção à Vega, Canópus?


Te chamarias tigre ou Homem?


Homem: reverso da compulsória


Fome do tigre.


Homem: alado e ocre


Pássaro da morte.